Análise O salgueirinho e as mamas

Arnaldo Saraiva, professor jubilado da Universidade do Porto


Quando na poesia popular, a sábia, jocosa ou marota “voz do povo” estabelece subtis associações entre o sexual e o vegetal, numa singular “linguagem das plantas”…

Aos 3 anos, armazenámos já muitas palavras, mesmo que o seu sentido nos escape, se não são tão “palpáveis” como “mãe”, “papa”, “cão”. E entre canções (por exemplo, de embalar), orações, lengalengas, adivinhas, provérbios, já decorámos versos ou poemas, ainda que não saibamos o que isso seja, ou o que seja a poesia (e algum dia o saberemos ?).

Pois foi por volta dos 3 anos que na aldeia beirã onde nasci tive a primeira experiência clara do fenómeno poético, ou de algum seu efeito sobre os outros e sobre mim. Um tio materno ensinou-me o que chamou uma quadra, que facilmente decorei e que, perante risos ou sorrisos garantidos, gostosamente repetia quando ele ou outros a queriam ouvir :

Ó salgueirinho do rio
Cortado com a mão canhota
Não há coisa mais macia
Que as mamas duma cachopa.

Claro que me escapavam então as razões do riso, como me escapava o sentido global da quadra, que até a um adulto pode parecer ainda agora uma quadra sem sentido, por não ser à primeira vista perceptível a relação entre os seus dois primeiros versos e os dois últimos, ou entre o salgueirinho e a cachopa (ou as suas mamas), e por não se perceber a alusão à mão canhota (de quem ?). Mas a quadra soava bem, e hoje sei que havia boas razões para agradar.

Note-se desde logo o seu léxico coloquial e popular – “canhota”, “cachopa”, ”mamas” e ainda o arquissemantema “coisa” ; note-se o diminutivo “salgueirinho” – invocado (“Ó”) e dialogicamente convertido em interlocutor ou destinatário ; note-se a relação estabelecida entre três reinos — vegetal, líquido e animal – e a convocação dos sentidos da vista e do tacto ; note-se a coincidência da quadra com uma só frase, requintadamente elaborada do ponto de vista rítmico, fónico e melódico : o comum verso redondilho conhece variações acentuais e de velocidade enunciativa ou de entoação, as rimas cruzadas terminais são só vocálicas (io/ia, ota/opa), mas têm apoios anteriores (inho, ó) e jogam com outras rimas assonantes (do a aberto – cortado, há, mais –, fechado ou nasal – salgueirinho, a, mão, canhota, não, macia, as, mamas, duma, cachopa) e aliterantes (do r – salgueirinho, rio, cortado —, do c –cortado, com, canhota, coisa, que, cachopa – e do m – mão, mais, macia, mamas, duma).


Uma linguagem das plantas
Estrutural e semanticamente, trata-se de uma quadra dicotómica como tantas outras, com dois dísticos distintos e aparentemente irrelacionados : o primeiro, invocativo, projecta o salgueiro, que qualifica de dois ou três modos : pequeno, ou novo, ou só amado, localizado no ou junto ao rio, e amputado (pelo enunciador ? por quem ?) ; o segundo, constativo ou afirmativo (e dogmático), aponta as mamas (palavra então muito plebeia, quase tabu) de uma cachopa ou a sua macieza, insinuando a experiência táctil do enunciador. Sabe-se como as quadras dicotómicas, omitindo embora os modalizadores, implicam ou pedem como regra uma comparação, por semelhança ou por contraste, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Nesta insinua-se a comparação entre o salgueirinho e a cachopa, entre o tronco ou os ramos daquele e as mamas desta, ou entre a macieza destas e a daquele (que até pode ser cortado com a mão esquerda, geralmente menos hábil) — o que permite a afirmação (superlativa e mais, universal !) sobre o que há de mais macio (mais agradável, pelo menos ao tacto) no mundo.

Mas essa comparação implica também a de duas mãos, ou do seu trabalho : a mão esquerda (e já se sabe como a esquerda simboliza frequentemente na cultura ocidental o disfórico, o heterodoxo ou o diabólico) e a mão direita, a mão cortadora e a mão apalpadora, a mão violenta (castradora) e a mão amorosa (prazerosa). Vemos assim que, nesta como em tantas outras quadras populares, se traduz não só a ideia comum, já referida por Leite de Vasconcelos (Tradições Populares de Portugal), de uma “linguagem das plantas” (tudo se passa como se o personificado salgueirinho falasse da sua macieza, como a videira fala da embriaguez, o loureiro da vitória, o lírio da castidade...) mas também a ideia igualmente popular de uma associação, para que já Frazer chamara a atenção (The Golden Bough), entre o sexual e o vegetal, especialmente o vegetal que está à beira rio ou ao pé do rio (álamo, choupo, amieiro, salsa, etc.).

No caso do salgueiro, essa relação parece reforçada pela crença que também Leite de Vasconcelos lembrou – “quando Deus quis formar a mulher, tirou uma costela de Adão mas pôs-lhe em vez dela uma costela de salgueiro” —, ou por simbologias mediterrânicas que vêem nessa árvore o símbolo da castidade, ou chinesas que a identificam com uma jovem mulher ou nela vêem o erotismo primaveril. No seu Cancioneiro Chinês, António Feijó celebra “a folha do salgueiro” que a “mulher moça e formosa” deixou cair no Rio Amarelo, e em que ela escrevera o nome dele.

A propósito, será interessante pensar noutras quadras populares que falam no salgueiro, como estas que encontramos, por exemplo, em cancioneiros de A. Tomás Pires, Leite de Vasconcelos e Armando Côrtes Rodrigues : Salgueiro pega de estaca, / Amieiro de raiz ; / Não te gabes que me deixas, / Fui eu a que te não quis ; O salgueiro co´o pé na água / Tem as raízes no lodo ; / Menina, não se namore / De quem corre o mundo todo ; / O salgueiro à beira d´água / Deita raiz pra onde quer ; / É como o rapaz solteiro, / Enquanto não tem mulher.

Nenhuma destas quadras me parece superior à que o meu tio, que não era poeta, me ensinou quando eu mal começara a falar. No entanto, até hoje não a encontrei em nenhum livro. Mas no opúsculo de José Lopes Dias Cantigas Populares da Beira Baixa Lidas e Ouvidas por um Médico, curiosamente publicado em 1944, encontrei esta : O salgueiro à borda d´água / Tem raízes à canhota / Não há coisa mais cheirosa / Que a folha da bergamota. O paralelismo é evidente, mas sem o vocativo, sem o deminutivo, sem o corte, sem a mão canhota, sem a cachopa e sem as suas mamas macias dir-se-ia que estamos perante um produto abissalmente diferente — também sem a graça, a energia subversiva e o erotismo do primeiro verdadeiro poema que sem entender bem aprendi de cor e que oralmente recebi de um tio, quer dizer da sábia, ou jocosa, ou marota “voz do povo”.


Um poema narrativo e elíptico
Poucos anos depois, estava na segunda classe, reteria para sempre outro poema que, embora da tradição oral, me chegou por escrito : a “Nau Catrineta”. É certamente exagerada ou equivocada a afirmação de Fernando de Castro Pires de Lima que o considera um resumo de Os Lusíadas e de toda a nossa História Trágico-Marítima, como é forçada a sua teoria sobre a relação dele com o naufrágio da nau de Jorge de Albuquerque Coelho, e como é errada a sua tese sobre a sua radical originalidade, pois se sabe que tem relações com outros poemas europeus, nomeadamente com a balada francesa “La courte paille”. Mas desde o incipit de presentificação visual e cinética ao final eufórico mas estrito, passando pela personificação da nau (“catarineta” ?), pela convocação auditiva, pela relação entre o narrativo e o dialógico, pela referência canibalesca, pelo crescendo dramático, pela recusa do contrato diabólico, pela intenção suicida, pela adjuvância angelical, tudo nesse poema narrativo e elíptico, de que se conhecem pelo menos 179 versões (cfr. Pere Ferré, Bibliografia do Romanceiro Português da Tradição Oral Moderna (1828-2000), parece perfeito e essencial, até porque fala de situações limites em que se impõe a escolha entre o fácil e o difícil, a sobrevivência material e a espiritual, deus e o diabo, a vida e a morte.

Mal imaginava eu que, já depois de muitas leituras feitas e da frequência de muitos poetas, iria ser “abalado” no meu primeiro ano universitário por outro poema epifânico. Foi um poema que li numa antologia francesa da Seghers, traduzido por A. D. Tavares Bastos. Recordo-me como estremecia ao passar por versos como


Le temps pauvre, le poète pauvre
Se confondent dans la même impasse.
ou como
Vomir cet ennui sur la ville.
Quarante ans et aucun problème

Résolu, même pas posé.
ou como
Faites silence, arrêtez les affaires.
Je vous assure qu´une fleur est née.
Elle est laide. Mais c´est vraiment une fleur.

Saí logo dessa antologia e não descansei enquanto não li o original português, “A flor e a náusea”, que me exigiu a atenção permanente ou a entrega para sempre à poesia de Drummond, e que esteve até na origem de um convívio já não poético mas pessoal, também ele inesquecível.

O subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.