Análise Bipartidarismo sem fogo nem chama

Luís Filipe Madeira, professor da Universidade da Beira Interior (UBI)

Na Beira Interior, as eleições autárquicas traduziram-se numa taxa de abstenção crescente, numa erosão mais ou menos acentuada dos “partidos de governo” e num rotativismo pouco inovador…
Encerrado o processo “Autárquicas 2013”, a análise das causas e consequências do comportamento eleitoral na Beira Interior não pode ignorar a estrutura do posicionamento político dos eleitores recenseados nos concelhos que compõem as cinco Unidades Territoriais Estatísticas III (NUTS III) em que se encontra subdividida a região ou, partindo de uma perspetiva local, o impacto da conduta dos partidos políticos e dos cidadãos eleitores na atual crise do regime democrático português.

Dado que os resultados oficiais das eleições realizadas em 29 de setembro último não se encontram ainda publicados e que constrangimentos temporais associados à publicação deste estudo impedem uma pesquisa mais aprofundada, a reflexão agora proposta apenas utiliza como fonte os resultados dos processos eleitorais relativos às Câmaras Municipais e às Assembleias Municipais que tiveram lugar em 2009 e 2013.

O bipartidarismo reinante

Uma análise, ainda que breve, dos resultados das duas últimas eleições autárquicas na Beira Interior revela que, em matéria de política local, o bipartidarismo reina sem desafios e continua a recrutar novos adeptos. A área político-ideológica coberta pelos Partido Socialista (PS) e Partido Social-Democrata (PSD) — que tomou a forma de candidaturas monopartidárias, de coligações, de apoio a “independentes” e, mais recentemente, de candidaturas dissidentes aos executivos municipais — cobriu 82,02 % dos cidadãos eleitores em 2009, percentagem que nas últimas eleições autárquicas ascendeu a 83,85 %.

Transformado em mandatos, este volume impressionante de eleitores coloca os dois partidos numa posição dominante, numa situação de duopólio no que concerne o governo municipal. A tabela I expõe os mandatos obtidos nas eleições autárquicas de 2009 e 2013 por candidaturas que se situam inquestionavelmente na área política e ideológica coberta pelo PS e pelo PSD.
Em 2009, num universo composto por 141 vereadores escolhidos por sufrágio universal na Beira Interior, apenas dois candidatos eleitos não se integram, de modo claro e evidente, na área político-ideológica do PS e do PSD ou por eles não terão sido apoiados de modo implícito ou explícito. Ora, nas eleições autárquicas de 2013 esta tendência manteve-se : dos 137 vereadores eleitos para o executivo dos 23 municípios que compõem a Beira Interior, apenas 3 não se encontrariam ideologicamente associados ao bloco central ou dele não teriam recebido apoio.

O fenómeno verificado na eleição dos executivos das Câmaras Municipais é também observável na escolha dos membros das Assembleias Municipais. Apesar da existência de um número mais elevado de mandatos a atribuir — facto que facilita a eleição de representantes de pequenos partidos e de candidatos independentes, e do eleitorado, quando se trata de eleger membros das Assembleias Municipais, acordar mais facilmente o seu voto a candidatos que não são propostos pelos PS ou PSD —, a tabela II revela um padrão de comportamento eleitoral similar ao observado na eleição da vereação dos Municípios.
Um rotativismo perfeito

Com efeito, nas eleições autárquicas de 2009 na Beira Interior, apenas 7,73 % dos membros das Assembleia Municipais não partilhavam dos princípios políticos e ideológicos dos PS e PSD. Embora, nas eleições autárquicas de 2013, o número de membros das Assembleias Municipais eleitos fora da área político-ideológica do bloco central tenha ascendido a 8,53 %, dado que o número de mandatos eletivos nas Assembleias Municipais foi reduzido em 17,79 %, o aparente alargamento em 0,8 % do espetro político representado, na realidade, esconde um decréscimo percentual acentuado, em termos relativos, de candidatos eleitos por partidos mais pequenos ou independentes. Assim, como no passado, a sociologia eleitoral da Beira Interior continua a privilegiar os dois maiores partidos portugueses.

Seria talvez pouco ortodoxo refletir sobre duas eleições autárquicas concretas sem abordar a clássica questão das vitórias e das derrotas eleitorais. A síntese desta problemática é breve. Nas Autárquicas 2009 na Beira Interior, o PSD venceu a eleição em 12 das 23 Câmaras Municipais, enquanto o PS, em 2013, obteve 13 vitórias eleitorais contra 10 do PSD. Ora, este rotativismo perfeito, previsível e automático, num quadro nacional em que se agrava a crise do regime democrático, impõe uma reflexão sobre o que constitui, na realidade, uma vitória eleitoral em democracia : um sucesso eleitoral pode, com efeito, esconder uma derrota do sistema democrático.

Obter mais votos e mais mandatos no quadro de um processo eleitoral livre e justo, só por si não garante a sanidade e a vitalidade do regime democrático. A redução progressiva do número de votantes nas propostas submetidas a sufrágio ou o alheamento dos cidadãos dos atos eleitorais, por exemplo, são sintomas de uma patologia de regime que não devem ser ignorados. Ora, os resultados das duas últimas eleições autárquicas realizadas na Beira Interior ilustram, de modo perfeito, esse fenómeno. O gráfico I expõe a evolução do volume de votantes nas eleições para os executivos municipais na Beira Interior.




Em matéria de Câmaras Municipais, da eleição de 2009 para a de 2013, a transferência de votos da área do PSD (nela incluindo os votos nas coligações por si lideradas e nos “independentes” por si apoiados) para o PS, para o Centro Democrático Social (CDS) e para a coligação dirigida pelo Partido Comunista Português (PCP) é bem menos significativa do que a perda de votantes, em termos absolutos, registada pelo próprio PSD e pelo PS. Com efeito, na Beira Interior, o partido considerado vencedor das Autárquicas 2013, o PS, perdeu 14 629 eleitores, cerca de 14,2 % dos votos obtidos em 2009. Este fenómeno é tanto mais significativo quanto os votantes nos candidatos da área político-ideológica do PSD sofreram uma regressão de 11 % que corresponde a menos 8 990 votos em relação às Autárquicas 2009.

Um descontentamento crescente

Por outro lado, a coligação liderada pelo PCP, embora tenha saído reforçada nas últimas eleições ao registar um acréscimo de sufrágios de 29,3 %, na realidade apenas obteve mais 2 256 votos do que nas Autárquicas 2009. No que diz respeito ao CDS, desconsiderando os votos obtidos em coligação, obteve menos 1 493 votos do que em 2009, tendo regredido 24,4 %. Por fim, o número de eleitores recenseados na Beira Interior desde as Autárquicas 2009 sofreu uma redução de 4,7 %, enquanto se assistiu ao crescimento do sufrágio em candidatos independentes, designadamente em candidaturas desafiadoras das decisões partidárias, assim como à expansão do voto de protesto, do voto em branco e do voto nulo. Um conjunto de constatações que revela um descontentamento crescente por parte dos eleitores em relação aos partidos dominantes. No que concerne a eleição para as Assembleias Municipais da Beira Interior, o gráfico II expõe graficamente essa realidade.

A menor área ocupada pelo quadrilátero vermelho em relação ao amarelo, fenómeno observável tanto no gráfico I como no II, decorre da perda de votos registada pelo PS, pelo PSD e pelo CDS nas Autárquicas 2013. Com efeito, no que concerne à eleição dos executivos camarários e dos membros das Assembleias Municipais, das quatro formações políticas com mais tradição em Portugal, apenas a coligação liderada pelo PCP registou um incremento no número de votantes em relação a 2009.

Esta erosão do prestígio do bipartidarismo e, designadamente, da autoridade dos dois partidos políticos que dominam a vida pública na Beira Interior é, no entanto, apenas o reflexo de um problema ainda mais fundamental que afeta o sistema político democrático português e que, para além de se manifestar, como já foi mencionado, na eclosão de candidaturas rebeldes, na progressão do sufrágio de protesto e no crescimento do voto em branco e do voto nulo, se materializa na dramática progressão da taxa de abstenção.

A abstenção constitui uma grave patologia dos regimes democráticos. A indiferença dos cidadãos em relação ao espaço público e ao modo como é governada a comunidade não pode ser encarada com naturalidade pelos detentores de cargos eletivos. Acresce que a abstenção é um indicador da desconfiança dos governados em relação aos governantes, um claro sintoma de que os cidadãos percecionam a classe política como indiferente aos seus anseios e aspirações. A tabela III expõe a taxa de abstenção verificada na Beira Interior nas Autárquicas 2009 e 2013.


Um profundo ceticismo

Em Portugal, a nível nacional, a percentagem de abstenção verificada nas eleições autárquicas tem atingido valores que ainda há poucos anos seriam impensáveis. Após o registo de uma preocupante taxa de abstenção de 40,99 % nas Autárquicas 2009, o volume de 47,4 % de eleitores que não se deslocou às urnas nas Autárquicas 2013 é revelador do profundo ceticismo dos cidadãos relativamente ao modo como é exercido do poder local.

Ora, na Beira Interior, embora a abstenção nas eleições autárquicas, entre 2009 e 2013, tenha evoluído a um ritmo inferior ao registado na globalidade do território nacional, o incremento da taxa de abstenção de 3,92 % e a existência de um volume de cerca de 40 % de cidadãos desiludidos com o sistema democrático de governação e, designadamente, com o governo local, impõe que o problema da abstenção, pela primeira vez, seja seriamente tomado em consideração pelos detentores de cargos públicos eletivos da região.

Embora esta não seja das regiões portuguesas mais flageladas pelo fenómeno da abstenção, dado tratar-se do espaço geográfico que é objeto da nossa reflexão e pesquisa, não pode ser ignorado nem omitido que, no quadro das eleições autárquicos, o progressivo alheamento dos eleitores do processo democrático é revelador da natureza insustentável do modo com o poder autárquico tem sido exercido na Beira Interior.

O divórcio entre os cidadãos-eleitores e as instituições democráticas tem, no entanto, responsáveis. Dada a sua preponderância no plano regional, o PS e o PSD têm responsabilidades especiais na reprodução de um modelo de exercício do poder político que se encontra esgotado e que, ao abdicar da participação cidadã na governação local, promove claramente a abstenção. Infletir esta tendência é uma necessidade que exige políticas públicas concretas e específicas, dedicadas a combater o afastamento do cidadão comum da vida política.

O interesse na participação dos cidadãos na política municipal não pode ser reduzido a um instrumento de marketing político para uso em campanha eleitoral. Mais do que ao governo central de Lisboa, cabe aos titulares dos órgãos de governo local, nas respetivas Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia, encontrar as modalidades de envolver os cidadãos, numa base regular, entre períodos eleitorais, nas decisões políticas impostas pela governação autárquica.

Os orçamentos participativos, os conselhos de políticas públicas ou as auditorias cidadãs são apenas alguns exemplos de políticas participadas pelos cidadãos que podem ser concebidas e desenhadas para educar os eleitores para a cidadania e fomentar a intervenção popular nas decisões que a todos dizem respeito.

Adotar novas práticas democráticas

A Beira Interior dispõe hoje de todos os recursos intelectuais e materiais necessários à execução de políticas públicas regionais participadas, as únicas suscetíveis de, a médio prazo, atenuar a desconfiança nos governantes e de inverter a tendência de afastamento dos eleitores do processo democrático local e nacional. Há, no entanto, uma variável que pode obstar a que a Beira Interior se transforme num palco privilegiado da modernização dos processos democráticos de governação local em Portugal, na Europa e, quem sabe, no mundo : a falta de vontade política, a indisponibilidade dos candidatos eleitos na região, no quadro das Autárquicas 2013, para inovar, para adotar novas práticas democráticas, motoras da participação, no governo das respetivas autarquias.

A democracia é, porventura, o mais frágil de todos os regimes políticos. A desafeição crescente dos cidadãos em relação ao sistema democrático de governo constitui uma das maiores ameaças atuais à estabilidade da democracia em Portugal. Dado que os extremismos se alimentam do descontentamento popular, o desafio que se coloca aos verdadeiros democratas da atualidade é a sua capacidade de legar uma democracia participada e de qualidade aos seus próprios filhos e netos. O repto é de monta mas, nesta matéria como em muitas outras, a sorte de quem se propõe aperfeiçoar o presente e conquistar o futuro tende a proteger os que ousam trilhar novos caminhos.

O subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.