Análise A Beira no “Mappa de Portugal”

Maria Adelaide Neto Salvado, professora jubilada do Instituto Politécnico de Castelo Branco

De como um geógrafo da primeira metade do século XVIII percepcionou a região central do país, entre o Douro e o Tejo, e mais particularmente o antigo Distrito de Castelo Branco…

Nenhuma outra fórmula como a contida no conhecido soneto de Camões «Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades» sintetiza de modo tão oportuno e conciso as sucessivas alterações que a estruturação do espaço do território português sofreu no decorrer dos tempos.
Determinadas pela interpenetração de factores de ordem múltipla, em que o social e o económico se conjugam e entrelaçam com o histórico e o jurídico, as mutações da divisão do exíguo espaço geográfico português, quer na diversidade das suas designações e dos seus limites, quer na dimensão da sua área territorial, espelham a transitoriedade daquilo que é humano. Este artigo apresenta algumas reflexões acerca do espaço que constituía o território do antigo Distrito de Castelo Branco na 1ª metade do século XVIII, ou melhor, acerca do modo como o percepcionou e sentiu um geógrafo desse século : João Bautista de Castro.

Uma concisa descrição geográfica e hidrográfica

Natural de Lisboa, onde nasceu em 1700, João Bautista de Castro seguiu a carreira eclesiástica, sendo ordenado presbítero em 1734. Viveu em Roma vários anos e, em 1755, faleceu em Lisboa. Escritor polifacetado, publicou diversas obras em prosa e em verso sobre temáticas variadas, algumas com o seu próprio nome, outras usando o anagrama de Custódio Jesão Barata. Entre elas destaca-se o Mappa de Portugal, obra em 4 volumes, cuja 1ª edição foi dada à estampa em Lisboa na Officina de Miguel Manescal da Costa, em 1745. A obra, dedicada ao Cardeal da Cunha, Inquisidor Geral de Portugal, conheceu várias edições e granjeou ao seu autor lugar de destaque na época.

Pela diversidade dos assuntos que abordavam e pela síntese e precisão das informações que continham, eram os Mappas obras geográficas entre as corografias e os dicionários. No prólogo da 1ª edição explica João Bautista de Castro os motivos que o lançaram na escrita desta sua abordagem sintética à geografia de Portugal : « (…) o meu intento foy querer sucintamente reduzir a breve Mappa as principais partes, que organizão o todo de Portugal ; porque sendo o conhecimento do nosso Reino, e a intelligencia da sua Historia a que mais nos compete, e importa saber, achando-se toda ella desmenbrada, ou separadamente inclusa em hum grande numero de volumes, para cuja lição se necessita de muito tempo, e trabalho, persuadi-me que facilmente com este opportuno resumo communicaria à minha memória sufficiente instrucção de tantas especies precisas». No prefácio da 2ª edição, Bautista de Castro aponta duas outras razões que o levaram à escrita desta obra : “não só instruir aos nacionaes principiantes”, mas principalmente, “para informar com individuação sincera aos estrangeiros do estado verdadeiro do nosso Pais ; considerando que só assim poderíamos atalhar nos contínuos erros, e descuidos, que se observam ainda nos autores modernos, que sem conhecimento das nossas terras chegam a falar de Portugal». É sobre as informações contidas no primeiro volume do Mappa de Portugal, na sua 1º edição de 1745, que se irão centrar as reflexões que se seguem. 

Esclarece o autor ser a matéria deste 1º volume «huma concisa descripção Geografica, e Hydrografica de todo o Reino», e esclarece a orientação metodológica que o norteou : « Para isto me vali não só de Escritores nacionaes, mas ainda estranhos, accrescentando, diminuindo, e illustrando o que achey ser conveniente em beneficio do adorno, clareza, e verdade”. Esta concisa descrição geográfica e hidrográfica de todo o Reino seria o primeiro passo na tarefa fundamental que o autor se propunha realizar : «reduzir a breve Mappa as principaes partes que organizam o todo de Portugal».
Por esta época, e por motivações que se prendiam com uma boa «administração da justiça», o território português encontrava-se dividido em seis áreas territoriais com a designação de Províncias. Uma hierarquia de espaços e funções articulava diferentes unidades em cada uma destas seis divisões. 

Pequenas unidades espaciais (vilas e lugares com os seus respectivos juízes) subordinavam-se aos corregedores de unidades espaciais de maiores dimensões : as Comarcas. A então Província da Beira, situava-se com a Província da Estremadura no centro de Portugal, separando as Províncias do norte (Entre Douro e Minho e Trás-os-Montes) das duas Províncias do sul (Alentejo e Algarve). Muito dilatada em espaço era então esta Província da Beira. Com a configuração de quase um quadrado perfeito e 200 léguas de circunferência, estendia-se desde o Douro ao Tejo e desde a fronteira castelhana ao Atlântico, incluindo uma extensa faixa litoral que se estendia do rio Douro ao rio Mondego. A vastidão desta área territorial ressalta se atentarmos na localização dos pontos chave da sua delimitação apresentados como referência por Bautista de Castro : 34 léguas entre Punhete (actual vila de Constância), debruçada no Tejo, a Vila Nova do Porto ; 36 léguas de Buarcos, no litoral Atlântico, ao Vale de la Mula, na fronteira leste, e 51 léguas do Rosmaninhal ao rio Douro, seguindo a linha de fronteira.

A borda, a margem, os Berones e o principado

Naturais e aquáticos eram, pois, os limites que separavam a Província da Beira do século XVIII, quer das outras províncias, quer das terras de Espanha. Segundo a interpretação do autor radicaria nesta realidade geográfica a razão do seu nome. Beira – afirma ele – significa o mesmo que borda ou margem. Seria pois esta a designação apropriada para um território à beira da água, ou melhor delimitado por água. Embora Bautista de Castro expresse ser esta a sua opinião, não se escusa de, em nota de rodapé, indicar outras interpretações acerca da origem do nome de Beira, referindo as perfilhadas por frei Bernardo de Brito e frei Manuel da Esperança. Segundo estes autores a designação de Beira não residiria nas características físicas dos seus limites, mas sim no facto de os primitivos habitantes que nesta região viveram se chamarem Berones.

Na verdade, nem sempre foram aquáticos os limites da divisão territorial designada no século XVIII por Beira. Em documentos do século XIII surge referência à Tenência da Beira, cuja área se circunscrevia aos territórios interiores ao sul da Serra da Estrela. Mais tarde, esta designação a toda a faixa da Estrela ao Douro, incorporando também as terras de além Côa, cujo direito de posse o tratado de Alcanises (1297) tinha reconhecido à coroa portuguesa. Em finais do século XIII o antigo Distrito de Castelo Branco surge incluído na Comarca da Beira que compreendia toda a faixa entre o Douro e o Tejo, separada do mar pelas comarcas da Estremadura e Antre Douro e Mondego.

No início do século XV a Comarca da Beira estende o seu território até ao mar por incorporação da comarca litoral de Antre Douro e Mondego. Foi a primeira vez que o território designado por Beira, espreita as águas do grande mar oceano. Efémera foi, no entanto esta fuga até ao Atlântico, pois, em 1421-1422, embora mantendo igual designação, a Comarca da Beira retornou à sua condição de interioridade, por perda, a favor da Comarca da Estremadura, das terras litorais de Antre Douro e Mondego. No vasto período balizado pelo fim do reinado de D. João I e o advento, em 1820, do liberalismo, sucessivas foram as mutações espaciais deste território designado por Beira. Na 1ª metade do século XVI mantém, no entanto, o mesmo nome de comarca, a mesma posição de interioridade de 1421 e, sensivelmente, idêntica área territorial e traçado. Mas, em finais do século XVI, e agora com a designação de Província da Beira, surge-nos um vasto território novamente espreitando o oceano, que englobava toda a área que se estende desde o litoral (entre a foz do Douro e a foz do Mondego) até à fronteira castelhana, a que se juntavam os territórios interiores entre o Douro e o Tejo. Este vasto território permanece sensivelmente com a mesma área e o mesmo traçado até finais do século XVIII. Eis, pois, a Beira, da época de Bautista de Castro. Teria sido esta largueza geográfica de tão dilatadas dimensões que, segundo Bautista de Castro, granjeou a este território o «honroso titulo de Principado».

Ricas, vastas, diversas e complementares deveriam ser as suas potencialidades, pois, desde 1734, os netos primogénitos dos reis de Portugal passaram a usar o título de Príncipes da Beira. Nem a declaração do domínio régio sobre esta zona, nem a partilha territorial fundamentada em imperativos de uma boa gestão judicial, conseguiram apagar e diluir a diversidade cultural que caracterizava a Beira.

À semelhança de uma manta de retalhos

No capítulo V «Divisão moderna pelas Provincias», Bautista de Castro considera a Provincia da Beira repartida em «duas grandes porções de terra» : a Beira Baixa, que se estendia desde a Serra da Estrela ao Tejo, e a Beira Alta, ocupando a restante área (na qual, no entanto, individualizava a faixa litoral entre o Porto e Coimbra, que designa por Beira Mar). Será a originalidade da posição litoral ou as diferenças da morfologia do solo implícitas na designação de Beira Alta e Beira Baixa, que levaram a esta individualização espacial ? Reflectirá esta fragmentação do vasto território da Beira, para além de contrastes físicos, profundas diferenças culturais ? Bautista de Castro não o esclarece, embora neste 1º volume surjam pontualmente certos relatos que se prendem com crenças e costumes e até pormenorizadas considerações acerca do génio do povo português.

Parece-me, no entanto, que a antiga Província da Beira do século XVIII (tal como aconteceu com a Província da Beira Baixa saída do Código Administrativo de 1936, ou o Distrito de Castelo Branco surgido da Constituição de 1976) se assemelha a uma «manta de retalhos» como admiravelmente a definiu o geógrafo Orlando Ribeiro ou, como a representaram dois notáveis pintores nascidos neste território : Manuel Gargaleiro e Tomás Mateus. Na verdade, da mesma maneira que nas mantas de retalhos feitas ainda em muitas povoações do interior da Beira a partir de restos de tecidos já usados, de diferentes texturas, cores e motivos, traduzindo a par de uma sábia economia camponesa, um valioso sentimento estético, o antigo Distrito de Castelo Branco, quer pela heterogeneidade das suas características físicas, quer de igual modo pelas diferentes maneiras de estar no mundo e de olhar a vida, é, ainda neste período de “globalização” do tempo e dos ritmos quotidianos, uma singular «manta de retalhos».

Depois de descrever as características do espaço físico, Bautista de Castro, neste capítulo V, enumera as potencialidades e recursos da economia do território da então Província da Beira : «He terra muy fertil de centeyo, milho, castanha, vinho, gados, caça e gostosos peixes, produzindo a amenidade deste Paiz toda a diversidade de saborosissimas frutas, especialmente os celebrados verdeaes de Inverno, ajudando muito para esta abundancia a grande copia de aguas de fontes, e rios (…)».

Acerca do espaço urbano e da divisão administrativa assim as descreve : « (…) incluem-se nesta Provincia quatro Cidades todas com Bispo : Coimbra, Viseu, Lamego, Guarda. Divide-se em nove Comarcas : de quatro são cabeças as quatro Cidades : Castello-Branco, Pinhel, Esgueira, Montemór o velho e Feira. Tem 234 Villas, das quaes 58, são acastelladas, além das quatro Cidades. As que confinão com Castella são estas : Castello Branco, que nunca foy accometida de Castelhanos, e fica oposta à Villa de Herrera ; Rosmaninhal, Segura, Salvaterra da Beira, que todas três se oppõem à Villa de Alcântara, praça de armas de Castella : Penagarcia, Idanha a velha, Monsanto, defensavel por natureza, Proença, Belmonte, Penamacor, Sabugal, Sortelha, Alfayates, Villar-Mayor, Castello Mendo, Castello Bom, Almeida, Pinhel, Castello Rodrigo ». Acerca da população lê-se : «Tem mais de seis mil homens, que podem tomar armas».

Um singular retrato dos habitantes

Um singular retrato dos habitantes da Beira é apresentado por Bautista de Castro. Começa ele por fazer eco das apreciações de Faria e Sousa sobre os beirões qualificados por este autor de «pedintes e pouco asseados», para em seguida elucidar : «que o defeito de alguns indivíduos não deve ser motivo para determinar a opinião de huma Provincia inteira». No entanto, prossegue com a visão depreciativa dos beirões referindo as considerações de frei Bernardo de Brito que, acerca dos habitantes da serra da Estrela, disse serem homens «asperos, e duros de condição, indomitos pelas armas, muy rusticos no traje, e modo de vestir, amigos de roubar o alheyo, e pouco fiéis no que tratavam». Mas, de seguida, tece ainda as considerações seguintes : «(…) a cultura dos tempos e a mesma experiência tem mostrado quanto se deve desvanecer este conceito, pois o que vemos nos seus naturaes, principalmente nos de primeira esfera he hum animo valente e brioso, amigos de buscar honras, e fortuna pela carreira das letras, ou das armas, em que tem feito progresso de grande credito para todo o Reino». E a propósito das marcas que contruíam a geografia religiosa da Beira do século XVIII escreveu : «Ha nesta Provincia a mayor porção de Comendas deste Reino : sustenta mais de 44 Conventos de Religiosos de varias Ordens, e 23 de Religiosas : muitas Igrejas com Coro, em que se reza o Officio Divino : inumeraveis Abbadias, e Ermidas».

As referências contidas na 1ª edição do Mappa de Portugal quer quanto a aspectos puramente geográficos, quer a certas crenças e hábitos de algumas regiões do interior Este da Beira revelam-se de muito interesse. Assim no cap. III, «Descripção circular pela margem marinha e raya terrestre», Bautista de Castro propõe-se dar conta da hidrografia e da geografia em redor de todo o reino antes de interiormente o descrever.

Várias são as alusões a comunidades que estruturam e vitalizam a rede do povoamento da região. As informações — releve-se — acerca destas povoações colocam, sempre em destaque ou as naturais qualidades defensivas dos seus sítios ou a fortaleza das muralhas que as cercam traduzindo uma das características da paisagem que secularmente se associou a esta região : a sua função defensiva. Alguns exemplos : do Rosmaninhal informa que a sua defesa está assegurada dum lado pelo Tejo e do outro pelo Elga, «que faz aqui a sua foz» ; acerca de Segura diz «com seu Castello pequeno, porém que descortina bem o campo» ; de Idanha-a-Nova, que «a aspereza do sítio lhe serve de fortaleza» ; de Penha Garcia, «com castello forte sobre penhasco. Tem humas montanhas, que lhe servem de grande defensa e confiança contra qualquer temeridade inimiga, que tentar invadir-nos por aqui» ; Salvaterra da Beira (hoje do Extremo) « com Castello forte bem descortinado, e guarnecido de presidio» ; de Idanha-a-Velha : « quasi em península que forma o rio Ponsul : he sitio doentio, mas tem muros fortes» ; acerca de Penamacor : «cuja villa e Castello esta sobre hum eminente penhasco, e he por sitio inexpugnavel» ; de Monsanto «com seu Castello fundado em hum monte das mais raras asperezas, e altura, que dizem há em Hespanha, porque se despenha a todos os lados por mais de meya legua. Tem esta Villa a singularidade de que sendo sitiada desde lhe podem deitar o cordão, póde para dentro delle lavrar pão, vinho e azeite para se sustentar, com muitas hortas, e pomares, sem o inimigo lho poder impedir : por isso entre os Castelhanos anda hum adagio que diz : Monsanto, Monsanto, orejasde mulo, el que te ganare, ganar puede el mundo ; já os Romanos a tiverão sete annos de cerco».

Da Estrela e da Gardunha, cântaros e lagoas

No cap. VI dedicado aos «Montes, Promontórios e Serras de mayor nome» são referenciadas as duas principais linhas de relevo : Estrela e Gardunha. Relativamente à Estrela escreveu Bautista de Castro : «He esta serra hum ramo dos Pyrineos, deduzido daquele grosso, e grande braço, que aparta Castella velha de Castella nova : está continuamente coberta de neve, que por isso disse hum nosso Poeta :

Que he de Herminia senhor serra nevada,
Onde o quente Verão nunca começa ».

De salientar nesta descrição a percepção perfeita do facto de a Estrela ser, em território português, a continuação do alinhamento montanhoso que separa os planaltos castelhanos de Castela-a-Nova e Castela-a-Velha. Na verdade, a Estrela, Lousã e Açor continuam em Portugal as serras da Gata, Gredos e Guadarrama, constituindo com elas um conjunto montanhoso que, séculos mais tarde, se designaria por Sistema Central Divisório. Neste sentido, a Estrela é de facto uma das partes dum «grosso e grande braço» que divide a parte central da Península Ibérica em duas secções.

Ainda acerca da Estrela, são de relevar as informações relativas aos cântaros. Descreve-os o autor como «uma eminente pirâmide de rochedos calvos e escarpados», cujo nome, esclarece (seguindo as informações da Chorographia Portuguesa do Pe. António de Carvalho), resulta de os antigos senhores da vila de Carvalho, terem sempre à disposição dos viajantes que se aventuravam na Serra um cântaro e um púcaro com água para que esses viajantes pudessem saciar a sede.

Cheias de interesse são também as referências à Lagoa Escura acerca da qual Bautista de Castro faz eco das «incríveis maravilhas» contadas pelos moradores da Serra : a cor verde negra das águas, a sua esterilidade em peixe, a sua comunicação com o mar, os movimentos das suas águas iguais aos do oceano. De relevar, pelo que traduz da continuidade e perduração das teorias da Antiguidade Clássica acerca da origem das águas continentais, é a interpretação dada por Bautista de Castro ao relato de um viajante francês sobre um acontecimento ocorrido na Lagoa Escura. Conta este viajante que «fazendo lançar na Lagoa um moço para nadar atado pela cintura, este observara que tendo andado 150 passos sentiu que as águas puxavam fortemente por ele». Comentando esta afirmação concluiu Bautista de Castro o seguinte : «donde se pode conjecturar que ao mesmo tempo que as águas saem do centro da Terra para formar aquele Lago, tornam a entrar por outra abertura». Este comentário, quer acerca da situação no interior da terra do local da origem das água das lagoas localizadas no cimo das montanhas, quer a afirmação de que daí vindas elas retornarão ao interior através de uma outra abertura, traz implícito a existência de canais que estabelecessem não só a comunicação das lagoas com o interior da Terra permitindo a circulação das águas num fluir contínuo entre a superfície e o mundo subterrâneo. Esta explicação traduz, de certo modo, a perduração da visão organicista do mundo, na linha platonizante, de que fazem eco vários autores do século XVII peninsular. De igual modo as crenças populares acerca da comunicação das lagoas da Serra da Estrela com o mar, mais não são do que o eco cristalizado na memória popular das tradições científicas que, vindas de Aristóteles e aceites como verdades incontestáveis durante toda a Idade Média defendiam essa íntima ligação.

Quanto à Serra da Gardunha, Bautista de Castro, descreve-a deste modo : «fica esta montanha cercada de muitas povoações, arvores, fontes hervas, e frutas deliciosas». Acerca do nome desta Serra perfilha as ideias do autor da Corographia Portuguesa e de frei Manuel da Esperança que afirmam : «arábiga é a sua origem», significando Gardunha «refúgio ou guarda da Idanha», nome justificado pelo papel defensivo desempenhado por esta serra no refúgio das gentes de Idanha-a-Velha, circunstância que explicita deste modo : «porque sendo os moradores desta povoação expulsos pelos mouros, se foram refugiar a esta Serra para se defenderem deles».

Rios, ribeiras e fontes mais notáveis

No cap. VII, «Dos Rios, e Ribeiras mais consideráveis» várias são as alusões a rios e ribeiras localizados no território do actual distrito de Castelo Branco. Embora quanto a alguns destes cursos de água (Almaceda, Alpreada, Isna, Líria, Meimoa, Ocreza, Aravil e Taveiró), as informações se restrinjam apenas a referências de localização relativamente às povoações que banham ou às povoações cujos termos delimitam, para outros são de salientar informações mais pormenorizadas. Assim, em relação ao Zêzere, Bautista de Castro precisa que «nasce na Serra da Estrela sobre a vila de Manteigas pela parte do Levante ; e dando volta ao Poente, recebendo vários rios e ribeiros, enfadado da jornada se vay a Sudoeste, e se torna para Sul receber outros riachos, e dá entrada ao Nabão, que com o ribeiro da Cortiça, e regatos daquelles montes, fertiliza Thomar». E acerca do modo como desagua no Tejo, perto de Constância, informa : « Mergulha com tanto impeto, que na distância de 1,500 passos ainda conserva a mesma cor azul, e sabor doce de suas águas». E sobre o Mondego esclarece : «Tem sua origem na Serra da Estrella ; e discorrendo pela cidade de Coimbra, lhe comunicão suas aguas fecundidade, e recreyo nos campos, e nos bosques ; e depois de banhar todo o terreno, e passar pela famosa, e formosa ponte, vay concluir seu curso e formar o porto de Buarcos. Da serenidade do seu progresso se lembrou Camões, quando cantou :

Vão as serenas aguas
Do Mondego descendo,
E mansamente até o mar não parão.
Falla o Poeta de quando elle corre no tempo do Estio ; porque no Inverno se precipita furioso, causando muitos estragos, e ruinas ; donde Vasco Mousinho veyo a dizer :
Mondego no Verão sereno, e brando,
Turvo no Inverno, bravo, e dissoluto.
Tè lá onde na foz, que vay buscando,
Paga de suas aguas o tributo.»

Relativamente ao rio Cá-Vay, informa : «passa pelo termo de Castello Branco não muyto distante da Igreja de N. Senhora de Mercoles» ; ao Ponsul que : «de tal forma cerca a Villa de Idanha-a-velha, que a reduz a Península. Em distancia de huma legua para o nascente de Castello Branco tem ponte». Quanto às ribeiras lê-se acerca da ribeira de Álvaro : «No termo da villa de Alvaro pela banda do Sul tem seu nascimento esta ribeira, que dá o nome à Villa ; e passando por duas pontes de pedra, rodea o monte da Villa, e se mette no Zezere, fazendo parecer aquella povoação huma peninsula». Sobre a ribeira da Ocresa diz : « no cimo da serra da Gardunha, nasce esta ribeira, e vem logo refrescando o lugar do Louriçal, que fica no termo de S. Vicente, e vay avistar Castello Branco, passando por boa ponte».

No início do cap. VIII «Das fontes mais notáveis», adverte que apenas se mencionam aquelas fontes que «por algumas particularidades se fazem dignas de admiração». Entre várias, apenas duas se localizam em território do actual distrito de Castelo Branco. Uma na Covilhã, na cerca dos religiosos do convento de S. Francisco, e outra em plena Serra da Estrela no sítio chamado de Valderosim. A causa que a ambas confere notabilidade é a mesma : as temperaturas excessivamente baixas das suas águas, facto que, segundo Bautista de Castro, fazia transmutar em vinagre o vinho que nelas era levado a esfriar.

Da abundância de águas saudáveis

O cap. IX é dedicado às caldas, e tal como acontecera em relação às fontes, este capítulo inicia-se com a advertência de que apenas se daria «informação das mais especiaes», dada a «abundancia das aguas saudaveis (…) de que o Reino tambem goza», e esta opção tomou-a explica : «por não defraudarmos deste apontamento o nosso Mappa». São referenciadas vinte e quatro caldas, três das quais localizadas na Provìncia da Beira. Unhais, perto da Covilhã, das quais afirma : «Nos termos desta Villa, e no Lugar chamado Unhães da serra ha Caldas procedidas de huma fonte de agua sulfurea, presentanea para achaques frios de juntas, e nervos» ; e as do sopé da Serra de Penha Garcia, acerca das quais informa : «Na Comarca de Castello Branco, e na raiz da serra de Penagarcia se admirão varias fontes de agua tepida com a prodigiosa virtude de sarar varias enfermidades, ou bebida, ou aplicada em banhos». Ainda na Comarca de Castello Branco são referidas as Caldas da Ribeira do Boy, que surgem deste modo descritas : «Estas Caldas estão no termo da Villa de Touro, Comarca de Castello Branco : compõem-se de aguas sulfureas, onde se tem descoberto remedio para estupores, e debilidade de nervos».

Os dois capítulos seguintes, o X intitulado « Da fertilidade do Reino em commum» que inventaria a riqueza em produções agrícolas e pecuárias e se referem diferentes medidas de organização e desenvolvimento do espaço agrário, bem como no XI «Dos Mineraes», que aborda a riqueza mineira, não se encontra qualquer referência à Província da Beira.

No entanto, pelo que revela duma síntese precisa em que harmoniosamente se entrelaçam acidentes e localizações geográficas das principais cidades (Coimbra «na deleitável margem do Mondego» ; Guarda «sobre penhascos ásperos» ; Viseu « em grande planura») com acontecimentos históricos relevantes (referências a Viriato, e aos reis Godos, Rodrigo e Wamba) ; em que se especificam funções que distinguem certas povoações (Almeida «que em armas possui estrela», «Bispal Vizeu», «Coimbra em letras admirável», Guarda «com Igreja pastoral luze brilhante») ; em que se releva a ascensão de alguns lugares (Castelo Branco «entre outras cobra fama», «Mais povoação a nova Idanha tem»), ou em que se noticia o declínio da importância de outros («Sem Mitra Idanha só o timbre guarda que de Wamba adquire pátria elegante») – é do maior interesse transcrever o retrato síntese que Bautista de Castro apresenta da Beira do século XVIII e com o qual termina o capítulo V do seu Mappa, socorrendo-se de oitavas de autor espanhol cujo nome não cita e que a seguir se traduzem :

«É a Beira a terceira região que ostenta
De Viriato o nome formidável,
Onde Coimbra Episcopal se assenta
Na deleitável margem do Mondego.
Produziu sete Reis opulenta
Grande no nome, em letras admirável.
Jaz a bispal Viseu em grande planura
Do infeliz Rodrigo sepultura.
Lamego Episcopal surge galharda
Em território ameno e abundante.
Sobre penhascos ásperos a Guarda,
Com igreja pastoral luze brilhante.
Sem Mitra Idanha, só o timbre guarda
Que de Wamba adquiriu pátria elegante,
Mais povoação a nova Idanha tem,
Que em sítio próximo se contém.
Castelo Branco entre outras cobra fama.
Tentugal pela fonte, que há nela,
Montemor, de Brigo obra se aclama,
Forte Almeida, que em armas possui estrela».

O titulo, o subtítulo, os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.