Análise A universalização da escola

Isaura Reis, professora no Agrupamento de Escolas Gardunha e Xisto, Fundão

Os sistemas educativos foram concebidos no contexto europeu e desenvolvem-se ao longo de mais de dois séculos, até se tornarem universais… 

A partir do século XVI, e decorrente da expansão europeia, o racionalismo, o desenvolvimento científico e a acumulação de capital vão criando condições para processos de mudança social e económica que geram a necessidade de formas de gestão e de controlo mais complexas. A escrita, “como elemento de racionalização, organização e controlo social” [1], é potenciada e progressivamente associada às noções de progresso e desenvolvimento. Da consagração da sua superioridade sobre a cultura oral, decorre um surto alfabetizador e escolarizador que leva à existência de um sistema de ensino organizado e estruturado, um modelo altamente institucionalizado e com legitimação nacional.

De uma forma lenta e progressiva, à medida que os diferentes espaços e território se foram integrando na economia capitalista, o Estado foi conquistando à família e à Igreja um lugar de centralidade em matéria educativa [2]. Esse sistema e essa escola, de que somos herdeiros, têm como referência o entendimento iluminista de que a instrução conduzia não apenas a um acréscimo de conhecimento, mas também à melhoria do indivíduo que se instrui.

Uma visão do mundo dessacralizada 


Sustentada nas ideias de universalidade, individualidade e autonomia, o projeto, emancipador, civilizacional preconizado pela filosofia das Luzes consistia no desenvolvimento moral e material do homem, através do conhecimento. Um conhecimento fundado na razão e no método científico e que, em nome do progresso, os iluministas se comprometeram em disseminar tendo em vista a participação, com autonomia, na vida económica, política e cultural. A ciência, a tecnologia e a educação seriam os agentes que “permitiriam libertar a energia criativa do homem de modo a colocar os recursos da natureza ao serviço do bem-estar da humanidade” [3]

Produto de uma visão do mundo dessacralizada, porque racional, o iluminismo permitiu o desenvolvimento das ciências, das técnicas, dos meios de comunicação e das fontes de energia, gerou uma evolução acelerada das forças produtivas, anunciou o advento da economia capitalista. No quadro de novas relações sociais, a burguesia, detentora dos meios de produção, estende o seu poder à sociedade. A autonomia das diversas individualidades não poderia afetar a dependência e a subordinação necessárias à unidade e coesão que o Estado exigia. A sociedade como fonte de valores, a submissão do interesse individual ao interesse coletivo e uma língua e uma história comuns sustentam a criação do Estado-Nação. Em resultado destas transformações foi-se erigindo um conjunto de valores e de modos de vida prevalecentes, designada por modernidade [4]

Evocando a Revolução Francesa, a conjuntura histórica, política e social foi responsável pela afirmação e pela difusão dos princípios e valores fundadores da utopia moderna. É o tempo e o lugar, em que a escola se liga à construção da nacionalidade e ao exercício da cidadania, através da criação de uma consciência coletiva, o que implicava que a escolarização [5] fosse concebida enquanto tarefa do Estado e como projeto de distribuição das posições sociais, valorizando o mérito, em detrimento do nascimento, definindo como finalidade a “tarefa de difundir o sentido crítico necessário à aceitação de uma sociedade liberta das amarras da tradição, capaz de se refletir e transformar continuamente” [6]

À medida que as “elites letradas” vão impondo as suas ideias, quanto à associação entre escolarização e progresso económico e social, vai simultaneamente surgindo a necessidade de um Estado centralizado forte. Num tempo em que as identidades nacionais eram fracas ou praticamente inexistentes, a escola é o instrumento a quem cabe “libertar os indivíduos dos elementos culturais particulares (familiares e do meio local), redutores da capacidade de agir racional característica do ser universal” [7]. Como refere Almerindo Janela Afonso, à escola pública, “enquanto uma das instituições centrais do exercício da violência simbólica”, incumbe “submeter todas as identidades dispersas, fragmentadas e plurais, em torno de um ideário político e cultural a que se haveria de chamar nação” [8]

Desta forma, a motivação racionalista junta-se à necessidade política. A universalização da escolaridade associa-se à criação do Estado-Nação, através da ideia de criação de um sistema escolar, “assente na razão ; centralizado no Estado, como representante do bem comum ; dirigido ao indivíduo, liberto dos constrangimentos comunitários — alargado a todo o espaço nacional e estruturado de forma sequencial” [9]

A criação de uma escolarização laica 


A ascensão do capitalismo industrial e a construção de uma nova ordem social, territorial, legislativa e política encontram na escolarização “uma resposta possível à necessidade de novos meios de socialização adaptados à sociedade que se quer ou se está a criar, (…) um instrumento premonitório e preparador do que se gostaria que fosse o futuro: patriota, ordeiro, organizado, hierarquizado e capaz de adaptar o povo às rápidas transformações tecnológicas e sociais” [10]

Em suma, através de um processo caracterizado por isomorfismo educacional assiste-se à criação de uma escolarização laica, gratuita, pública e universalizada. Para tal concorreram um vasto conjunto de fatores : a organização económica, a cultura e a religião e a ordem política e administrativa. Por um lado, a reforma protestante e a cultura das Luzes, embora de forma diferenciada, traduziram-se numa crescente racionalização e laicização das sociedades. Por outro, a revolução industrial desencadeou profundas mutações nos tecidos económicos e sociais que potenciaram a utilização crescente de uma forma de cultura escrita. Finalmente, a consolidação do Estado-Nação permitiu a legitimação da cultura burguesa industrialista e a difusão de uma cultura universal unificadora. 

Portugal não é exceção à vaga difusora da escolarização. A educação dos jovens e crianças da aristocracia e da burguesia portuguesa do século XVIII estava entregue a colégios de ordens religiosas, universidades, conventos, preceptores e mestres ; imperava uma enorme influência da Companhia de Jesus, cujo ensino livresco, repetitivo e memorista foi alvo de acesa crítica ; estrangeirados e iluminados reclamavam a necessidade de uma formação científica e humanística e fornecem a Marquês de Pombal os princípios básicos da sua ação reformadora. 

Pondo termo a cerca de duzentos anos de atividade pedagógica dos jesuítas, Pombal manda publicar um alvará, com data de 28 de julho de 1759, que extingue o ensino da Companhia de Jesus e aponta as novas bases metodológicas para as Escolas Menores. 

Vários autores referem que este é um acontecimento de grande relevo no campo do ensino em Portugal. Rogério Fernandes precisa que os anos de 1759-1760 marcam a “primeira fase da fundação do ensino régio gratuito (hoje diríamos oficial)” e assinalam “os primeiros passos na construção de um sistema de ensino”, em Portugal [11]. Para António da Nóvoa, a criação deste sistema escolar foi uma ação pioneira, “antes ainda da propagação destes sistemas pela Europa com a difusão dos ideais da Revolução Francesa (1789)” [12]

Em 1772 o ímpeto reformista de Pombal acentua-se com a apresentação do Mapa das Escolas Menores e com a criação do Subsídio Literário. No entanto, estas reformas não impedem que uma grande parte de crianças e jovens fique completamente excluída da escolarização, pois “Pombal não concebia, de nenhuma forma, a generalização do ensino. Aqueles que se destinassem, como assalariados, à agricultura ou às artes fabris limitar-se-iam a aprender a instrução religiosa, oralmente difundida pelos párocos” [13]

Com a queda do governo em 1777, a situação da educação em Portugal pouco evoluiu até à Revolução Liberal. Só após 1834 foram tomadas medidas de estruturação de um sistema de ensino “laico”, gratuito e obrigatório. A dimensão laica era garantida por um ensino público, ministrado por leigos. A gratuitidade era assegurada pela Carta Constitucional de 1826. A obrigatoriedade [14] era instituída para todas as crianças que habitassem em povoações onde já existissem escolas, ou que vivessem na sua proximidade [15]

Um fenómeno claramente minoritário 


Se o ensino técnico é uma “invenção” pombalina, justificada pelo interesse iluminista em desenvolver a formação técnica, industrial e comercial, com a Regeneração assiste-se ao seu desenvolvimento, designadamente com a criação dos liceus (1836). Porém, neste período ocorrem outras iniciativas, com significado educativo, que, em certa medida, representam uma evolução “da noção de caridade religiosa para a noção de dever público, assumido pelas instituições ou por simples particulares” [16], designadamente a criação da Casa Pia de Lisboa e da Sociedade das Casas da Infância Desvalida. 

Porém, o ímpeto reformador deste período não se reflete em mudanças significativas reais na condição escolar e educativa dos portugueses. Apesar de Portugal ser um dos países que mais cedo decretou a escolaridade obrigatória, apresentava simultaneamente uma das mais baixas taxas de cumprimento. Vinte anos depois de ter sido decretada, o Censo de 1864 revela que apenas 11,7 % das crianças (6-15 anos) estavam matriculadas nas 2 774 escolas elementares públicas e privadas do país [17]

Não são claras as razões que explicam esta realidade. Parece incontestável que qualquer lei, só por si, não muda a realidade, pelo que teriam que ser grandes os obstáculos que impediam o usufruto da condição moderna conferida pela frequência escolar. De facto, a escolarização em Portugal era um fenómeno claramente minoritário e urbano, já que naquela época “as elites portuguesas se dividiam entre o desinteresse a respeito da implementação de uma verdadeira escola nacional e o realismo perante as condições gerais do país no qual, (...) uma parte substancial do seu povo se encontra sufocada pela subsistência” [18]. A perceção de inutilidade da instrução, a pobreza generalizada e a eventual inadequação das políticas educativas parecem explicar o atraso alfabetizador em Portugal. 

Se o século XIX tem sido considerado o século da escola, em Portugal este prolonga-se pela Primeira República, período em que a crença na educação atinge o seu auge [19]. Com a difusão das ideias republicanas e a sua instauração em 1910 assiste-se a um momento de aprofundamento da identidade nacional, alicerçada na ideia de Pátria, consubstanciada na República, nos seus valores e nas suas instituições, que se consolidam através do sistema escolar. 
Na Primeira República entende-se que a escola tem como função a emancipação pelo saber e a integração cívica na sociedade republicana. No primeiro caso, o pensamento iluminista afigura-se como matricial e no segundo, existe uma associação ao projeto social e político de fazer das crianças e dos jovens bons cidadãos.

Da Primeira República ao Estado Novo

Entre a panóplia legislativa republicana produzida refira-se a instituição do ensino infantil oficial, não obrigatório, o alargamento da escolaridade obrigatória para 5 anos, a criação de três escolas normais primárias e das universidades de Lisboa e do Porto (pondo fim ao monopólio da Universidade de Coimbra), a melhoria do estatuto social dos professores e o reforço do seu associativismo, fatores que têm reflexos na riqueza do debate pedagógico produzido nesta época. Refira-se, também, que a propaganda republicana propiciou um ambiente cultural que fomentou a difusão da instrução popular através da ação de um conjunto muito vasto de instituições [20].

Porém, grande parte do ambicioso plano de melhoria das taxas de escolarização e de combate ao analfabetismo ficou por ser cumprido. No final dos curtos e atribulados anos da República, dois em cada três portugueses continuavam analfabetos e duas em cada três crianças não cumpriam a escolaridade obrigatória. Em jeito de balanço, Nóvoa [21] considera como sendo o melhor da Primeira República o que se construiu à margem do ensino oficial : um grande movimento cultural e associativo de educação popular, dinamizado em grande parte por grupos de intelectuais e professores e por associações populares e operárias.

Face aos perturbados dezasseis anos de República e à crise da economia mundial, é instaurado um regime ditatorial em Portugal. Após o golpe de Estado de 28 de maio de 1926, estão criadas as condições para Salazar instituir o Estado Novo, articulado e legitimado no trio Deus, Pátria e Família. Com a Constituição de 1933 foi institucionalizado o corporativismo de Estado, cujo resultado se saldou por um divórcio entre a educação e o crescimento económico, através da prevalência dos valores tradicionais aos valores de modernização que o desenvolvimento capitalista faria supor.

A educação passa a ser orientada por um quadro de valores tradicionais ; perde-se o seu carácter laico, valoriza-se a inculcação ideológica, ao serviço dos valores impostos pelo regime, restringe-se o âmbito do ensino primário, extinguem-se as escolas primárias superiores, reduz-se a escolaridade obrigatória para três classes (1930), deteriora-se a qualificação e o estatuto remuneratório dos professores e extingue-se o ensino infantil oficial (1937) [22].

Sem que os princípios que o fundamentam sejam significativamente alterados, até ao fim da Segunda Guerra Mundial, o processo de escolarização dos portugueses desenvolve-se num contexto de corporativismo e autoridade, “numa ampla reação contra a modernização e contra a instabilidade inerente ao processo de industrialização dependente, ambas associadas ao caos do período republicano precedente” [23]. A escola foi dominada por uma ação de doutrinação católica e política, correspondente a uma escolarização rudimentar obrigatória para todos e a uma estrutura escolar pós-obrigatória, fortemente estratificada para alguns : o ensino liceal e o ensino técnico.

A escolarização foi-se firmando nos países europeus de uma forma progressiva, mas muito desigual. Tomando como referência as datas de introdução da escolaridade obrigatória e a evolução das taxas de escolarização podemos concluir que existem diferenças claríssimas entre os países do norte e do sul da Europa (Quadro 1).


A Alemanha, a Dinamarca e a França implementam de forma mais efetiva a obrigatoriedade escolar e apresentam um ritmo de escolarização mais ou menos uniforme entre 1870 e 1930. Já a Grécia, a Espanha e Portugal são mais lentos na sua implementação. O caso português tem a singularidade de ser precoce na legislação, mas muito tardio na sua implementação e consolidação. Só nos anos de 1950 é que as taxas de escolarização dos portugueses irão atingir valores com alguma aceitabilidade.

Os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.

[1] António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade: o caso português”, in Stephen R. Stoer, Luiza Cortezão e José Alberto Correia (orgs.), Transnacionalização da educação: da crise da educação à ‘Educação’ da Crise, Porto, Afrontamento, 2001, p. 28.
[2] Licínio C. Lima, Escola como organização e a participação na organização escolar, Braga, Universidade do Minho, 1991.
[3] João Sebastião, “Os dilemas da escolaridade”, in José Manuel Leite Viegas e António Firmino Costa (orgs.), Portugal, que modernidade? Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 311.
[4] Anthony Giddens, As consequências da modernidade, Oeiras, Celta Editora, 1992.
[5] Entendida como “uma relação estruturada e progressivamente exigente com um modo de cultura escrita, mas também a submissão de cortes populacionais com níveis etários bem determinados a uma forma de socialização imposta e aplicada através de uma instituição construída expressamente para o efeito, a escola, que a partir de meados do século XIX se organiza em rede e se articula com outras formas de educação, sob o comando político, pedagógico e administrativo do estado” (António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade…”, p. 31).
[6] João Sebastião, “Os dilemas da escolaridade”, p. 311.
[7] João Sebastião, “Os dilemas da escolaridade”, p. 312.
[8] Almerindo Janela Afonso, “Estado, globalização e políticas educacionais: elementos para uma agenda de investigação” in Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, ANPEd, abril 2003, n. 22, p.35-46.
[9] Ana Nunes Almeida e Maria Manuel Vieira, A escola em Portugal. Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p. 54.
[10] António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade…”, pp. 39-40.
[11] Rogério Fernandes, “Bocage e a educação entre dois séculos”, in Sísifo, revista de ciências da educação, Lisboa, 2006, n° 1, p. 19.
[12] António da Nóvoa, Le Temps des professeurs, Porto, Porto Editora, 1987, p. 138.
[13] António da Nóvoa, Le Temps des professeurs, p. 138.
[14] Segundo Nóvoa, é a reforma de Passos Manuel de 1835 que institui a obrigatoriedade do ensino primário (António da Nóvoa, Le Temps des professeurs). Para Torgal e Candeias é a legislação de 1844 de Costa Cabral que decreta a escolaridade obrigatória em Portugal (Luís Reis Torgal, “Instrução pública – o sentido e a força de um conceito liberal” in José Mattoso (dir.), História de Portugal, vol. 5, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993 ; António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade…”).
[15] Luís Reis Torgal, “Instrução pública…”
[16] Luís Reis Torgal, “Instrução pública…”, p. 621.
[17] António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade…”
[18] António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade…”, p. 49.
[19] António da Nóvoa, “A República e a escola : das intenções generosas ao desengano das realidades”, in Revista Portuguesa de Educação, Braga, CIEd, 1988, v. 1, n° 3, pp. 29-60.
[20] José Salvado Sampaio, “O ensino primário na I e II Repúblicas”, in O Professor, Lisboa, Editorial Caminho, fevereiro 1985, pp. 4-16.
[21] António da Nóvoa “A República e a escola…”
[22] José Salvado Sampaio, “O ensino primário…”
[23] Stephen R. Stoer, Educação e mudança social em Portugal: 1970-1980, uma década de transição, Porto, Afrontamento, 1986, p. 69.