Reflexão Acerca da ordem estabelecida

João Camilo, professor na University of California Santa Barbara

Os nossos modelos de organização do pensamento são limitados e se repetem com adaptações e modificações ligeiras em situações que aparentemente nada têm a ver umas com as outras…

Quando ainda vivia em Aix-en-Provence fui uma vez a um hospício servir de intérprete a um emigrante português que era trabalhador rural. O senhor tinha feito a guerra no ultramar antes de emigrar para França e começara recentemente a tresloucar, vendo pelotões e esquadrões de soldados nas filas de saladas da quinta onde trabalhava. As autoridades francesas achavam que era melhor para ele regressar a Portugal e ser tratado lá. Não sei o que lhe aconteceu e espero que tenha saído com alguma saúde recuperada da confusão em que andava metido.

Agora, à distância de mais de vinte anos, posso compreender melhor os problemas que estavam a atormentar o trabalhador português, afastando-o da visão do mundo do senso mais comum. Parece-me evidente que os nossos modelos de organização do pensamento, os andaimes e as lentes mentais da nossa percepção da realidade, são limitados e se repetem com adaptações e modificações ligeiras em situações que aparentemente nada têm a ver umas com as outras.

A ordem protectora e consoladora

Veio-me esta ideia ainda a propósito do que se passa com aquilo que designamos por literatura : os livros que se publicam e a maneira como são recebidos, avaliados, referidos nos jornais, nas revistas e nos estudos dos especialistas. No fundo, a escrita das histórias da literatura obedece a um padrão de organização semelhante ao que leva os militares, nos desfiles, a apresentar-se bem organizados em esquadrões, em pelotões e não sei em que outros mosaicos rigorosos e elegantes que desfilam harmoniosamente pelas avenidas das cidades em dias de festa com os seus tambores e bandeiras. Tudo obedece a um profundo e burguês, ou simplesmente humano, desejo de ordem — porque a ordem é protectora e consoladora, mostra o sentido como coisa clara, e por isso inspira tranquilidade e confiança no presente e no futuro. É por isso que alguns autores de poemas e de romances, que não couberam nos pelotões organizados pelos generais e marechais detentores da ideia da ordem literária enquanto viviam, só mais tarde, quando os costumes, as mentalidades e a própria noção de forma literária mudaram, são finalmente incorporados no património comum da humanidade. Mas entretanto não faltam nunca os soldados, os sargentos e os generais para ir preenchendo vistosamente os desfiles mundanos de cada estação ou época. Imagino que não foi por falta de esquadrões e pelotões de gente ordenadamente no seu lugar a cumprir a missão que o sistema lhe distribui ou permite levar a cabo que a crise se instalou e vai agora ameaçando os nossos destinos que pareciam tão imunes aos sobressaltos, à dúvida e à interrogação.

Pode pensar-se a mesma coisa a propósito dos pintores e da pintura, dos músicos e da música, dos filósofos e da filosofia, de todas as esferas da actividade humana, evidentemente. Foi devaneando estas coisas que também percebi hoje, melhor do que tinha percebido ontem, por que razão é que Lennie Tristano, genial pianista de jazz, mestre admirado por Bill Evans, não teve o mesmo sucesso popular que o também extraordinário autor de Waltz for Debby. É que Lennie Tristano é frequentemente um pianista que vai por caminhos onde a frase conhecida ou a linha melódica conhecida ou reconhecida não se deixam perceber tão facilmente como na música de Bill Evans. A sua procura do segredo ou da verdade enreda-se em fios mais complicados do que em Bill Evans, as soluções provisórias revelam-se-lhe soluções insatisfatórias — e o que parecia um achado acaba por se ir desdobrando noutras reflexões que não se vê ainda aonde nos levam. O rio, a narrativa que procura a sua ordem, o seu tema e o seu fim, vai correndo para uma meta que não se deixa adivinhar facilmente ; o que era aparentemente uma conclusão renasce de novo como interrogação e a busca continua indefinidamente.

As inofensivas conversas de café

Foi ainda pensando estas coisas hoje que identifiquei melhor a linguagem, o tom e o respeito cheio de ternuras untuosamente eclesiásticas que muitas vezes parece que caracterizam a linguagem dos conferencistas nos colóquios dedicados à literatura, discursos que pessoalmente já acho tão ridículos, inúteis, insuportáveis e enfadonhos como a maior parte da literatura portuguesa contemporânea. Às vezes parece que estamos num concílio de padres, bispos e arcebispos, com os cardeais a darem as suas instruções ou a quererem corrigir o catecismo e impor a sua própria ortodoxia como verdade oficial. A vida real, a literatura, são outra coisa, mas nós afastamo-nos delas em devaneios de linguagem balbuciantes e a que escapa o essencial. Em Portugal é sempre o estilo que tende a dominar, mesmo em autores certamente respeitáveis por outras razões ; a qualidade da experiência é que é frequentemente modesta ou pouco interessante. Não há nada a fazer, a maior parte dos portugueses gosta sobretudo é de estilo : frases bonitas, coisas com piada, mas pouca substância séria ; o acesso à condição artística exige esse disfarce “superior”. Os professores e homens de letras a que me refiro, com a sua linguagem aparentemente especializada e muitas vezes de uma solenidade ridícula, infantil e oca, fazem de facto parte do pelotão fanhoso e insuportável que celebra nas suas igrejinhas, muito episcopalmente, a obra dos pobres escritores que na maior parte dos casos nem sequer terão nada a ver com as divagações insensatas de gente tão vaidosamente e religiosamente ensimesmada.

Nos jornais e nas salas de aulas peroram vozes semelhantes, é tudo a mesma seita religiosa, eles falam uma espécie de dialecto que se institucionalizou e perdeu a noção do sentido das obras e do sentido das palavras usadas para falar delas. O método de análise pode parecer por vezes muito francês e influenciado por Derrida, mas os conferencistas perdem-se em balbuciares e variações barrocas ou delirantes sobre as obras que não levam muito longe, com uma espécie de incapacidade de se atacarem seriamente e convincentemente a um tópico ou problema que de facto nos diga respeito ; eles e elas nem vêem realmente as palavras que estão no texto e se as vêem não as entendem. Ou temos de acreditar que os escritores só escrevem para proporcionar elucubrações virtuosas a críticos e professores meio vesgos ? Domina em muitos casos (felizmente não em todos, ainda há gente séria e interessante) um jargão académico que ou foi mal entendido ou é pouco eficaz ou não vem a propósito — e é como se andássemos todos no liceu ainda a aprender com muita ordem formal — a dos pelotões e arcebispados literários — coisas inúteis ou erradas. Sem vermos o que de facto é importante. A aparente democratização da cultura trouxe para o domínio das letras e da reflexão em geral a superficialidade inofensiva das conversas de café. Com a internet temos, além disso, a conversa de café global. Há na pop cultura, que também invadiu a universidade, um comprazer-se arrogante e pretensioso no insignificante que desvirtua o seu interesse real. É esse o escândalo. Felizmente o número de obras-primas da literatura universal é inesgotável, de modo que é tudo uma questão de se terem os meios de fazer a escolha correcta e ignorar o ruído que nos invade a existência. Imagino que não é fácil. No que me diz respeito eu sei que demorei tempo a perceber as coisas com este distanciamento em relação aos métodos e costumes da minha profissão, à linguagem do ritual da minha "igreja".

* João Camilo nasceu em Salgueiro do Campo (Castelo Branco). Foi leitor de português nas universidades de Oslo, de Rennes e de Aix-en-Provence, e professor na Université Stendhal-Grenoble III. É atualmente professor na University of California Santa Barbara.

O subtítulo, os intertítulos e nota biográfica são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.