Escritas O Faísca

Ana Nobre *

Foi numa noite em que o céu se vestiu de um negro mais escuro ainda. O negrume era tão forte, tão baço que sufocava. Quase que nem deixava respirar.


Tudo carregado de preto, a começar pelas estrelas que não se viam. Àquele preto cerrado enegrecia-o mais ainda uma espessa camada de nuvens opacas que faziam dele o interior profundo de uma caverna muito de negro.

Nada, nenhuma luz, nem um único filamento, durante muito tempo. Apenas um firmamento fechado, propício ao medo. Assim permaneceu, até que um forte trovão confirmou a presença avassaladora do relâmpago súbito que rasgou primeiro a escuridão. Na sua descarga violenta adivinhava-se o vigor faiscante que se propagou como fogo-de-artifício pelos relâmpagos sucessivos que iam descendo em abundantes cascatas de lava. Vinham furiosamente, chegavam inteiros aos olhos abismados, num forte clarão elétrico de luz que tomava a forma de uma enguia arroxeada para serpentear livremente pelas trevas.

A cada relâmpago alvoraçavam-se os alvos mais indefesos. Batia-lhes apressado o coração por causa do medo.

Era uma noite de trovoada. Relampejava, trovejava, caía uma chuva fria intensa.

No interior resguardado de uma casa, alguém bebia despreocupadamente um chá quente. Como era de noite, dormia talvez, aconchegando-se ainda mais na certeza segura de não ter que se proteger. Onde a cama abrigava, a trovoada era apenas o todo que se ouvia ou luzes que atravessavam a grossura das paredes que nada deixavam suceder.

Mas, na rua, alguém padecia. Estava sózinho ao relento. E, entre relâmpagos e chuva, sentia que o chão incerto oscilava, enquanto fugia do que não podia conter. Por isso, apressava-se, corria muito ligeiramente, para ser quem tinha encontrado refúgio contra a ameaça que se ia adensando desmesuradamente.

Só quem estava preso a uma curta corrente, apanhado de repente pela trovoada, se sentia presa ansiosa de um raio. Não precisava pensar nem refletir. Mesmo sem nada saber ou compreender, o cão adivinhou instintivamente o perigo porque a trovoada lhe entrava inteira pelos ouvidos, pelos olhos e pelo olfato, deixando-lhe o pêlo castanho todo molhado.

O pouco que o cão queria era libertar-se. Ver-se livre da corrente pesada para poder partir. Então, começou a ganir, erguendo-se valentemente nas patas traseiras, latiu com a boca toda, esforçou-se cada vez mais na tentativa indistinta de se fazer ouvir. Aos seus latidos sobrepunha-se o retumbar feroz da trovoada intensa, por detrás do qual parecia apenas que sussurrava baixinho. De nada lhe valia ladrar. Ninguém o ouvia. Ninguém o via. Como foi tudo em vão, abriu tanto os olhos que a descarga elétrica dos relâmpagos se refletiu na sua cor da íris, arroxeando-a. Assustado, diante do pavor de não ter onde se esconder, entregou-se num impulso ao último ato de sobrevivência : saltou, pulou, arrancou a força toda do seu pequeno corpo magro para rebentar a corrente de ferro que o amarrava. Esticou-se tanto que o delicado pescoço esguio ficou em ferida e o coração amedrontado via-se a bater por fora, por entre o pêlo molhado que lhe desprendia um forte odor a medo.

O cão não compreendia o por quê da sua sorte. À sua frente, três outros cães, que não eram nem mais bonitos nem mais fortes do que ele, aninhavam-se em segurança, com os focinhos colados, no interior seco de um velho bidão enferrujado. Sem entender, o cão via que eles puderam refugiar-se lá dentro. Queria estar com eles para se abrigar entre os seus. Porém, aquela esperança depressa esmoreceu. Porque os outros não estavam presos, só o cão continuou ali sozinho a escorrer de frio e de medo.

Apesar de estar cansado e com o pescoço dorido, não desistiu. Com o instinto de se defender do que intrepidamente lhe chegava aos ouvidos e aos olhos receosos, o cão correu uma vez mais em desespero à volta do perímetro definido pelo reduzido alcance da corrente. E, nesse preciso momento, entregue ao pânico total que se apoderou dele, sentiu um esticão repentino que lhe queimava o pescoço em sangue. Muito mais rápido e apertado do que os esticões que o dono lhe dava cruelmente com a corrente, sob o pretexto de que não servia para a caça. Naquele momento tinha sido diferente. Foi a coleira que se engatou por acidente no ferro de um alicerce que nunca fora acabado.

Todo molhado, todo assustado, impedido de se soltar, a coleira presa ao ferro fez com que o cão asfixiasse e assim morresse. Ainda mais frio, com aquela frieza da morte que o arrefecera, ficou agarrado ao pequeno pilar onde poderia ter sido erguida a casota dele.

A trovoada tanto descarregou que se extinguiu e à noite sucedeu o dia. Mas do tremendo medo que incutiu ficou como prova o cão.

O dono que nunca chorava, que tinha uma cara séria, fechada como uma porta que nunca se abre, comoveu-se quando saiu para a rua. Chorou por não ter procedido bem e ele, que nunca lhe fazia festas, afagou-lhe pela primeira vez o corpo já sem vida. O grande desprezo com que sempre o tratou esmoreceu. O rafeiro que nunca chegou a cão de caça chegara-lhe ao coração. Indigno era o dono.

Triste do cão que morreu assim, morto pela trovoada… Só falta dar-lhe um nome para me recordar dele sempre.


* Ana Nobre nasceu no Fundão e é professora de inglês-alemão no ensino secundário no Algarve.