Análise O poeta e as realidades indizíveis

António Lourenço Marques, médico

Os versos luminosos de António Salvado continuam a chegar-nos, desde há longos anos, num ritmo constante, mas sempre com a surpresa do que é novo e fascinante.

Habituámo-nos a ver, na poética das suas palavras, imagens claras e belas de realidades não acessíveis pelos métodos comuns. É o trabalho criador do poeta — que tem neste ofício primoroso das palavras o dom de as tecer melodicamente, fazendo sobressair coisas que antes não conhecíamos ou sentimentos tão íntimos que de outra forma não nos seriam revelados – para nós, uma dádiva jubilosa !

Estamos perante meia centena de sonetos, escritos em momento muito particular da sua vida, os quais se conjugam numa unidade exemplar. Arrisco dizer, conhecendo o ímpeto caudaloso da criação do poeta, que terão vindo á luz, num espaço de tempo muito breve, moldados na circunstância de uma doença intensa, que o atingiu, perturbando o sossego dos seus dias transparentes. São versos, direi, escritos no “quente” duma experiência vital, ou numa experiência de alto risco, em que a integridade do ser vacila nas ânsias de poder, acaso, sucumbir, como pressentimos nesta poesia. O que é que então se passou no íntimo da sua existência ? Não há abundantes testemunhos sobre experiências idênticas, menos ainda na primeira pessoa de escritores, e raridade maior como inspiração vivida dos poetas. Ora, António Salvado oferece-nos, nesta forma superior, pela poesia, um depoimento de valor incalculável.

Os doentes, na condição de “pacientes” (termo que considero bárbaro pelos significados que se lhe atribuem: “conformados”, “mansos”, “padecedores”, “resignados”, “sofredores”, “vítimas”, há um rol de sentidos amordaçantes nesta palavra !) são os “tradicionalmente notáveis silenciosos.” Quem fala é o médico, este é que sabe e decide o que é conveniente. O doente tem a via livre, sim, mas para a obediência !

E no entanto, como as palavras do principal ator são necessárias para dar existência à medicina, na sua textura real, que vai da etiologia, à sintomatologia e à nosologia ! Sem penetrar a vivência concreta do doente que, tal como no conhecimento da dor, exige atender a todas as suas expressões, nomeadamente verbais, o médico pairará distante, ainda que convencido das certezas insofismáveis que lhe advêm da aplicação da “infalível” ciência e das tecnologias exploratórias fantásticas. “O que toca o meu corpo” pergunta o poeta, “neste silêncio afrontoso de pouco ouvir dizer ?” Poderia ser feita com mais agudeza tal acusação de corte do médico com o doente ?

Esta poesia de António Salvado é um valioso contributo para o conhecimento da interioridade do ser confrontado com as suas experiências, neste caso, algumas das que são mais duras. Sente-se nela a oscilação entre a felicidade vivida (“memória feliz”, “memória de alegria com ventura”, “alegres campos...”), a “dúvida sobre a continuidade da vida frágil” e a esperança e o desejo de “poder beijar” ainda a “aurora de mãos rosa” “nestas horas em que o sol se vai aproximando mais de nós” ! A consciência do “sofrimento”; o “pesadelo”, a “chaga”, a “urna”; a “noite antecipada, sem astros, apagados no infinito; “a presença da solidão”; e o “medo” que cede à “confiança” e exige o “fim às angústias deste medo”, “continuando o sonho”, “vencendo as noites” e ansiando pela “serenidade”. E o poeta, neste desafio empolgante, socorre-se do seu refúgio : a poesia, a “folha branca”, “o retomar das palavras sempr’à espera / que eu as volte a chamar e então lhes dê / um sentido imprevisto, e que as entregue / à união comigo e com desvelo.” Palavras como companhia : “Fico à espera d’um verso, uma palavra / que nele entrando aceite companhia / á minha solidão...”.

Esta joia da literatura segue o caminho do poeta, em palavras suas, que recordamos : “transformando as vivências, mesmo ocupadas por pequeníssimas coisas”, em “grandes acontecimentos.” Em Os Sonetos do Interregno encontramos também a reflexão sobre as questões maiores : o porquê da doença “que do nada surgido tudo pede” ou o significado quanto ao destino da morte, que o estar vivo implica, e que o “som estridente de mortal metralha”, na doença, aviva.

As cinquenta e uma peças de joalharia poética, dos Sonetos do Interregno contêm a visão íntima da experiência existencial, a qual seria intransmissível, não fosse o recurso deste instrumento poderosíssimo, que é a poesia do grande António Salvado.


António Salvado, Sonetos do interregno, Lisboa, Fólio Exemplar, 2013, 67 p.