Análise A escola de massas

Isaura Reis, professora no Agrupamento de Escolas Gardunha e Xisto, Fundão

Entre o Pós-Guerra e os anos 1980 assiste-se à expansão e massificação dos sistemas educativos, entendidas como instrumento do crescimento económico, do progresso social e da autorrealização do indivíduo…

A ordem económica estabelecida gera desequilíbrios e disfunções ou contradições que podem ser moderados através de mecanismos corretores cuja configuração será determinada pelo sistema de valores prevalecente. O Estado-Providência keynesiano foi a forma de equilíbrio encontrada no Ocidente, entre capitalismo e democracia e entre crescimento económico e justiça social. A sua afirmação e consolidação, como paradigma do desenvolvimento social, pode ser interpretada como uma plataforma de compromisso resultante das contradições estruturais do modo de produção, sem que isto possa significar o ignorar da sua importância quanto à universalidade dos direitos de cidadania, justiça social e condições de bem-estar.

Um fator essencial do desenvolvimento


Com a queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque (1928) e a subsequente Grande Depressão, o liberalismo clássico caiu em descrédito, ganhando força as teorias de intervenção do Estado na economia, norteadas pelo pensamento de John Maynard Keynes e postas em prática pelo New Deal. Com o aproximar do fim da Segunda Guerra Mundial, em 1944, os países ricos criaram os acordos de Bretton Woods e estabeleceram regras intervencionistas para a economia mundial, cuja adoção contribuiu para que os trinta anos seguintes fossem de rápido crescimento económico. Era a chamada “era de ouro” (Golden Age). Após a destruição, a Europa renascia com o apoio financeiro do Plano Marshall.

Na maioria dos países industrializados instalou-se um regime de crescimento baseado na produção e no consumo de massa de que resultou uma configuração da economia mundial em que “ compromissos institucionalizados, nitidamente específicos de cada país, tornaram-se compatíveis com um crescimento nacional forte e estabilizado devido a um regime internacional favorável em matéria de difusão tecnológica, de comércio e de financiamento externo” [1]. O modelo dominante era de tipo fordista, envolvendo uma estrutura social e institucional suportada pela pax americana, por um dado nexus capital-trabalho e por um determinado papel do Estado, através da sua crescente intervenção na vida económica e social.

Na época, o processo de desenvolvimento era concebido como um fenómeno essencialmente económico a que correspondia um aumento da riqueza ; conferia-se ao investimento, na forma de formação de capital, de infraestruturas ou de capacidade produtiva, um papel de motor do próprio desenvolvimento e uma dada relação com a educação.

Independentemente dos pressupostos, existe uma transversalidade no pensamento económico dado que este acolhe o reconhecimento do valor económico da educação e da escolarização. Quando se considera a educação enquanto meio de promover atitudes, transformando padrões culturais, e se pensa o papel da escola, enquanto forma de aquisição de aptidões e qualificações necessárias à economia, compreende-se a sua relevância na formação da mão-de-obra e no favorecimento da inovação requeridos pelo desenvolvimento.

É neste quadro de referência, assumindo que as qualificações e os recursos humanos de uma sociedade constituem um fator essencial do seu potencial de desenvolvimento, que surgem as teorias do capital humano, cujo principal fundamento residia na ideia de que “a um acréscimo de escolarização correspondia um acréscimo de desenvolvimento, traduzido num aumento da riqueza” [2].

A necessidade de investir nos recursos humanos inscreve-se na lógica de modernização das economias e das sociedades. Isto é, à adaptação da sociedade à transformação da economia, o que obriga a uma rápida “atualização das estruturas produtivas”, a uma “adequação dos diferentes mecanismos de apoio ao processo de crescimento económico e a uma mudança de atitudes, comportamentos e mentalidades” [3]. Desta forma, a modernização, enquanto processo dinâmico de desenvolvimento económico, social e político, apoiada por um regime de acumulação fordista e pelo Estado-Providência keynesiano, foi acompanhada por uma expansão dos sistemas educativos. Com efeito, a educação encontra na teoria económica uma legitimação científica, justificando-se assim o apelo ao Estado para que este respondesse às necessidades de qualificação de mão-de-obra, o que, de certa forma, é revelador de um estímulo à oferta educativa oriundo da esfera económica e política.

A completa inadequação da política educativa


Assim, a expansão dos sistemas educativos tende agora no sentido da criação de uma escola de massas, uma escola para todos, oficial, obrigatória e laica, valorizadora do princípio de igualdade de oportunidades e cujas finalidades exprimem um consenso social firme, cuja validade universal implica uma responsabilidade predominantemente pública que, de acordo com a lógica meritocrática, se traduzia numa maior justiça e igualdade. Quando se fala de escola de massas, essencialmente, entende-se que a escolaridade para além da sua universalidade, integra uma característica de abertura a uma significativa diversidade social e cultural de alunos, uma escola pública que democratiza a igualdade de acesso e, desta forma, possibilita a mobilidade social e a melhoria do estatuto social dos jovens [4].

Em Portugal, após a Segunda Guerra Mundial, é evidente a completa inadequação da política educativa do salazarismo para satisfazer as necessidades da economia e da sociedade (Tabela 1). Os fins e os instrumentos adotados resultaram numa escola que “não preparava os alunos nem em número, nem em qualidade, para as necessidades dos novos tempos” [5].



Porém, face aos ritmos de crescimento acelerado das economias europeias vai assistir-se a uma alteração de natureza das exigências ao sistema educativo português, que passa a orientar-se em torno de dois objetivos. O primeiro, de manutenção da ordem social, altera os seus instrumentos de suporte através da progressiva substituição da Igreja católica pelos aparelhos repressivos do Estado. O segundo, respeitante à introdução do contributo educação para o desenvolvimento económico, em parte resultante de uma concentração acentuada de capital [6].

A doutrina corporativista justificava a intervenção do poder político na esfera económica. A política industrial traduzia-se na garantia de baixos custos de produção (salários e matérias-primas de origem colonial), avultados investimentos públicos em infraestruturas, incentivos financeiros e benefícios fiscais ao investimento e uma elevada proteção dos interesses industriais contra a concorrência interna e externa, através da Lei de Fomento e Reorganização Industrial de 1945 — conhecida pela lei dos monopólios. É nesta conjuntura política e económica que surgem algumas tentativas de incremento da escolarização. Uma delas diz respeito à Reforma do Ensino Técnico (1947), outra ao Plano de Educação Popular (1952) e uma outra à Reforma Veiga Simão (1973).

A Reforma do Ensino Técnico conferiu à educação não só uma dimensão ideológica, como uma contribuição económica para o desenvolvimento nacional [7]. Já o Plano de Educação Popular é revelador de uma convergência entre o reconhecimento individual e social das vantagens da escolarização e do papel do Estado na sua efetivação [8].

Um conjunto de medidas reformadoras do sistema

Estas medidas não podem ser reduzidas a uma leitura do isolacionismo e do nacionalismo salazarista, já que a sociedade portuguesa, apesar de todo o aparelho repressivo, acaba por acolher novas ideias vindas do exterior. De facto, na altura em que as teorias do capital humano chegam a Portugal opera-se uma expansão, ainda que moderada, do sistema escolar. Estimulada por uma expansão da industrialização e, em grande medida, guiada pela pressão do exterior, esta expansão reflete-se não só na escolaridade básica, mas também no ensino técnico. 

Chega o momento em que, em Portugal, se conferem à educação preocupações que decorrem diretamente da esfera económica ; as carências de qualificação da mão-de-obra obrigam à necessidade de uma rápida expansão da oferta escolar. Desta forma, as organizações internacionais assumem “o carácter simultaneamente de legitimação e de mandato” das políticas de educação nacionais [9].

Em 1959-60 a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) põe em marcha o Projeto Regional do Mediterrâneo. Porém as propostas e as conclusões apresentadas para a educação portuguesa foram não só desvalorizadas como alvo da crítica oficial. Desta forma, o projeto ficou praticamente reduzido a “um exercício de planeamento quase académico” ; todavia, constitui um contributo decisivo para que a tese desenvolvimentista progressivamente fosse “ganhando influência nos departamentos económicos e nos gabinetes de planeamento educativo e de formação de mão-de-obra” [10].

Com a integração de Portugal na EFTA (European Free Trade Association / Associação Europeia de Comércio Livre) criaram-se as bases de um mercado europeu, aprofundando a especialização industrial e orientando a produção para a exportação. Este facto, conjugado com os Planos de Fomento, com a revisão da Lei do Fomento e Reorganização Industrial e com a abertura ao capital estrangeiro, dá origem a uma fase de ouro do desenvolvimento industrial português. Perante a urgente necessidade de um potencial científico e técnico indispensável ao desenvolvimento do país, o ministro José Veiga Simão inicia uma reforma global do sistema educativo português.

Em 1971, pela primeira vez na história do regime corporativo, assiste-se ao debate de um conjunto de medidas reformadoras do sistema educativo que se traduz no paradoxo “de consagrar o princípio da democratização do ensino, num contexto político não democrático, o que denuncia os limites ainda bem presentes, entre nós, da consagração plena de uma modernidade organizada” [11].

Dando um cunho desenvolvimentista e tecnocrático ao pensamento iluminista, Veiga Simão levou à aprovação da lei n.º 5/73, de 25 de julho, cujo conteúdo se constitui “como um símbolo de um corte radical com a noção salazarista de educação (ensinar a cada um o seu lugar na sociedade) e como uma aproximação não só à ideia popular, mas também meritocrática de educação, como igualdade de oportunidades” [12].

Se a reforma de Veiga Simão foi norteada pelas ideias de desenvolvimento (apoiada na teoria do capital humano e na modernização), reparação e reconstrução da sociedade através da formação de pessoas e instituições modernas, tal desígnio nunca chegou a ser alcançado. Quando a guerra colonial levava a que a defesa sorvesse uma parte significativa dos recursos públicos não era possível antever sucesso para esta reforma. Portugal vivia num “contexto económico e social pouco favorável aos objetivos aparentemente perseguidos de democratização e de modernização do sistema” [13].

Uma massificação que não democratizou

Com o 25 de Abril de 1974 operou-se uma rutura política e social. A legalidade democrática e a institucionalização dos direitos constitucionais resultaram na consolidação do Estado-Providência e a expansão da oferta, centrada num eixo educação-democracia-cidadania, resultou numa inegável melhoria do acesso à educação por cada vez mais amplos sectores da população (Tabela 2).



No início dos anos 80, desencadeia-se o processo de elaboração da Lei de Bases do Sistema Educativo (LBSE), cuja promulgação é feita em 1986, no mesmo ano em que ocorre a integração formal de Portugal na Comunidade Europeia. 

Desta feita,
  1. normaliza-se o processo de construção institucional do sistema educativo português, designadamente com um novo modelo de direção e gestão das escolas, a reformulação curricular e a introdução da avaliação aferida ;
  2. alarga-se a escolaridade obrigatória para nove anos e assegura-se a expansão da escolarização ;
  3. confere-se um mandato europeu à reforma educativa, com o relançamento dos ensinos técnico-profissional e profissional. Esta estruturação inaugura, segundo alguns autores, um novo vocacionalismo na política educativa nacional
Em suma, parece não restar dúvida que entre o pós-guerra e os anos 1980 se assistiu, praticamente em toda a Europa, ao crescimento dos efetivos escolares, ao aumento das taxas de escolarização, ao alargamento da escolaridade obrigatória, ao prolongamento de estudos e ao crescimento das percentagens de financiamento público da educação. 

Este crescimento andou a par de um aumento significativo da riqueza global e de um grande empenho na expansão das oportunidades educacionais. No entanto, a escola pública que agora é frequentada por segmentos sociais e culturais extremamente diferenciados, confronta-se consigo própria, dado que se massificou, mas não se democratizou ; foi incapaz de criar as condições necessárias para que a utopia moderna se concretizasse.

Perante o avolumar de problemas e críticas, cede-se terreno e abrem-se portas a variadas reformas que se propõem solucionar os problemas e corrigir as disfuncionalidades dos sistemas educativos.


Os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.





[1] Robert Boyer, “As palavras e as realidades”, in Serge Cordellier (org.), A Globalização – para além dos mitos, Lisboa, Editorial Bizâncio, 1998, p. 48.
[2] Rui Canário, Formação e situações de trabalho, Porto, Porto Editora, 1997, p. 36.
[3] Almerindo Janela Afonso, “A redefinição do papel do Estado e as políticas educativas : Elementos para pensar a transição”, in Sociologia, problemas e práticas, Lisboa, CIES-ISCTE, n° 37, novembro de 2001, p. 46.
[4] Almerindo Janela Afonso, Políticas educativas e avaliação educacional, Braga, Centro de Estudos em Educação da Universidade do Minho, 1999.
[5] Medina Carreira, O Estado e a educação, Lisboa, Cadernos do Público, n° 7, 1996, p. 25.
[6] Stephen R. Stoer, Educação e mudança social em Portugal : 1970-1980, Uma Década de Transição, Porto, Afrontamento, 1986.
[7] Stephen R. Stoer, Alan D. Stoleroff e José Alberto Correia, “O novo vocacionalismo na política educativa em Portugal e a reconstrução da lógica de acumulação”, in Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, CES, n° 29, fevereiro de 1990, p. 11-53.
[8] António Candeias, “Processos de construção da alfabetização e da escolaridade : O caso português”, in Stephen R. Stoer, Luiza Cortezão e José Alberto Correia (orgs.), Transnacionalização da educação : Da crise da educação à “educação” da crise, Porto, Afrontamento, 2001.
[9] António Teodoro, “Organizações internacionais e políticas educativas nacionais : A emergência de novas formas de regulação transnacional, ou a globalização de baixa intensidade”, in Stephen R. Stoer, Luiza Cortezão e José Alberto Correia (orgs.), Transnacionalização da educação…, p. 129.
[10] António Teodoro, “Organizações internacionais e políticas educativas nacionais…”, p.135-136.
[11] Ana Nunes Almeida e Maria Manuel Vieira, A escola em Portugal, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2006, p. 63.
[12] Stephen R. Stoer, Educação e mudança social em Portugal…, p. 59.
[13] António Teodoro, “Organizações internacionais e políticas educativas nacionais…”, p. 139.