Escritas A Páscoa da minha infância

Eduardo Maia Costa

A Páscoa no Fundão da minha infância era uma semana memorável. Começava no Domingo de Ramos, com uma missa linda. Eu levava um ramo de loureiro, enfeitado com camélias do jardim da minha Avó, que o João, o jardineiro, arranjava primorosamente.

O meu ramo era o mais bonito da igreja! Eu empunhava-o orgulhoso. Aquela missa era especial: o perfume das flores e do incenso, os cânticos, davam um ambiente celestial à igreja. Era um cheirinho a paraíso.

Depois, vinham três dias com umas estranhas cerimónias na igreja, à noite. Não sei já quais eram essas cerimónias do ponto de vista litúrgico. Sei, sim, que terminado esse ritual, chamado “trevas”, desencadeava-se um outro, a cargo dos fiéis: agitando matracas, batendo com os pés no chão, levantava-se um alarido indescritível na igreja. Era um cerimonial um pouco bárbaro, como se a desordem (ou o demónio, sei lá) triunfasse, transitoriamente embora, sobre a ordem estabelecida por deus. Eu tinha uma matraca novinha, feita também pelo João, e abanava-a com a força que podia, contribuindo gostosamente para a algazarra e o desconcerto geral. Era divertido. Mas, mais que divertido, era transgressivo. Eu não conhecia ainda essa palavra, mas sentia um certo prazer, que não sabia explicar, em participar de um ritual, dentro da igreja, que rompia com a solenidade e a ordem imposta na missa e em todas as outras cerimónias de culto. Era certamente o demónio a insinuar-se na minha alma (e na dos outros)…

Chegava a 5ª-feira, o dia (a noite) das Capelas. Penso que não houve alterações desde então. Mas aqueles quadros vivos tinham, naquela época, sem televisão, um impacto grande nas pessoas. Era a rivalidade entre as capelas, era a tentativa de identificação das figuras (quem era o Cristo? quem estava a fazer de Judas? e de Madalena?...) a discussão sobre qual a melhor capela, a correria de uma para outra, com centenas (milhares?) de pessoas acotovelando-se para ver melhor, mais perto, os silenciosos e imóveis “atores”, que tudo faziam para assumir, encarnar, a personagem que lhes fora atribuída. Era uma noite animada, movimentada, a correr entre o Espírito Santo e Santo António, passando pela Senhora da Conceição por São Francisco... Não se podia perder uma capela, era preciso não perder tempo, que a procissão ia percorrendo as ruas do Fundão e fechando as capelas…

E vinha a 6ª-feira, dia central da Páscoa. Era a procissão do “Enterro do Senhor”. Talvez não muito diferente do que é hoje. Mas o que agora me importa é dizer o que ela era para mim naquela época. Era um momento solene. Apagavam-se as luzes nas ruas. Instalava-se o silêncio. À frente apareciam os archotes, depois as matracas, mais atrás as três mulheres de preto que cantavam um cântico fúnebre. Vinham muitos anjinhos, enquadrados pelas capas negras dos “irmãos”, que mais pareciam da Inquisição que da Misericórdia… Por fim, vinha o “Esquife do Senhor”, depois o pálio com os padres e atrás as “autoridades”, e atrás de tudo, como está estabelecido na ordem natural das coisas, o povo, o comum dos mortais.

A procissão era solene, impressionava-me, mas não me metia medo. Comunicava-me um sentimento de magia ou de transcendência… Eu também não conhecia ainda essa palavra, mas sentia algo de superior, de sublime, que batia fundo no meu coração.

A seguir vinha o sábado de Aleluia. Era uma manhã gloriosa. Cristo ressuscitava aí por volta do meio-dia e então era uma explosão de alegria: saíamos da igreja para o adro gritando “Aleluia, Aleluia”, e agitando entusiasticamente campainhas. Os sinos da igreja dobravam sem parar. Era um som juvenil, puro, festivo, radioso, que enchia todos de júbilo. Havia uma promessa de alegria no ar que penetrava profundamente em mim.

Creio que há muito que esta manhã de aleluia foi eliminada do calendário litúrgico e remetida para a noite do mesmo dia. Por decisão do Papa (não sei qual) Cristo passou a ressuscitar lá para a noite. E assim acabou aquela manhã saudosa de alegria sem névoa.

Por fim, o Domingo de Páscoa. Era o dia da visita pascal. O sr. Prior percorria todo o Fundão, casa a casa, acompanhado do sacristão, levando a imagem de Cristo a beijar aos fiéis. Demorava-se um bocadinho mais nas melhores casas, evidentemente, mas isso também fazia parte da ordem natural das coisas. Seguia-o um bando de miúdos, em que eu me incluía. É que havia o costume, nas casas mais “ricas”, de, depois da saída do padre, as gentes da casa virem à janela atirar aos miúdos moedas de tostão. Vinham as moedas no ar e cá em baixo eram já empurrões e encontrões, para as apanhar. Eu era pequeno e raquítico, de forma que poucas moedas agarrava. E lá íamos segundo o itinerário do padre. 

Até que o sr. Prior entrava na casa da minha Avó. Aí eu abandonava o grupo e subia as escadas. Depois de ele sair, eu vinha à varanda com a minha Avó. Ela tinha um saquinho de tostões que juntara durante o ano. E então, do alto da varanda do solar da minha Avó, olhando para o bando de miúdos que lá em baixo se agitavam e empurravam, eu atirava mãos cheias de tostões para um lado e para outro, acompanhando os movimentos frenéticos do bando. Sentia-me ungido subitamente de um poder imenso. Ainda há pouco andava lá em baixo entre a miudagem aos empurrões. Agora, era eu que, de cima, dirigia a cerimónia e olhava sobranceiramente a garotada. (Não por muito tempo, que o saco era pequeno…)

Foi a primeira experiência-lição que tive sobre o exercício do poder. E de como ele corrompe as almas.

Era assim a Páscoa da minha infância.