M. Lopes Marcelo, antigo diretor regional do IFADAP *
Usos e costumes
traduzem de certo modo a forma como o homem se relaciona com a natureza e com o
seu semelhante. E constituem até o bilhete de identidade de uma localidade e de
uma região…
Na milenar sequência de usos e costumes, os
saberes das comunidades rurais constituem sínteses amadurecidas pelo tempo,
traduzindo a forma como o homem se relaciona com a natureza e com o seu semelhante.
Tais alfabetos de saberes e sabores, traduzidos em tecnologias produtivas (saberes-fazer)
em que se cristalizou a alma inventiva de sucessivas gerações, correspondem às
especializações naturais que compõem o património produtivo e gastronómico rural.
E cá temos os vinhos, os queijos, o
azeite, o pão, o mel, os enchidos e a doçaria que constituem todo um
artesanato produtivo da maior importância para a economia e da maior relevância
para a preservação da identidade e para o desenvolvimento sustentado das comunidades
rurais.
O despovoamento e a desertificação
A par de novas actividades, como o turismo e os serviços
da economia social proporcionados pela melhoria das vias de comunicação e
infraestruturas, a actividade agrícola é o suporte do mundo rural, bem como da
transformação artesanal, visando assegurar a diversidade biológica e a
humanização da paisagem. Na preservação da diversidade biológica insere-se a
valorização e a defesa dos produtos agro-alimentares de tecnologia caseira num
processo genuíno de produção em boas condições higiénicas e sanitárias que
garantam autenticidade associada ao local de produção em cultura natural e
biológica que possa ser certificada.
Só assim, o que resulta da produção directa do agricultor
e do artesão é seriamente tradicional, o que pressupõe e dá expressão a laços
culturais autênticos. Só assim, tais produtos de marca cultural podem ser de
forma sustentada o bilhete de identidade de uma localidade e de
uma região e serem bem valorizados. Em termos de mercado, da
agressividade do mercado, os processos mecânicos e químicos de produção
acelerada e em série obtêm produção em quantidade mas não em qualidade.
No processo produtivo agro-alimentar, a par do solo, o
elemento essencial é a água, pelo que é característica da sabedoria popular a
protecção dos recursos hídricos : fontes, poços, ribeiros, ribeiras e rios. Tal
protecção é assegurada pela preservação das espécies ripícolas nas margens dos
cursos de água, a limpeza dos leitos e uma florestação adequada com a lógica e
características do solo para ser compatível com a agricultura. Não foram a
sabedoria popular nem os interesses directos das populações residentes que
conduziram à florestação maciça de grandes manchas contínuas com espécies não
coerentes nem adequadas ao equilíbrio e renovação dos recursos hídricos, como
acontece com o eucalipto.
Em função da disponibilidade de água, das características
do solo e da tecnologia utilizada, o agricultor organiza e humaniza o
território de modo a que o coberto vegetal abranja culturas herbáceas
(de ciclo sazonal, anual ou mesmo inferior), espécies arbustivas
(de ciclo médio) e arbóreas (árvores de ciclo mais longo). Integram-se, ainda,
no processo produtivo várias espécies de animais. Quando pela escassez de água
e/ou a falta de mobilização do solo se conduz ao seu esgotamento produtivo, as
culturas herbáceas deixam de ser realizadas, as ervas secam e não se preserva
nem se renova a fertilidade dos solos – então, os arbustos propagam-se
infestando os terrenos (as estevas, as giestas, os rosmanos, as carrasqueiras,
os cardos...).
De tal infestação acelerada, com o solo a ficar duro e
como que vidrado e sem absorver a água, resulta o esgotamento do fundo de
fertilidade do solo e a progressiva destruição das árvores. Com o
empobrecimento dos solos e esgotamento dos recursos hídricos, acelera-se um
processo de regressão florística
que se traduz na descontrolada propagação dos arbustos que contribui para a
expulsão das pessoas dos campo (despovoamento), e destrói
os equilíbrios naturais acelerando o esgotamento da água, ou seja o complexo
e dinâmico processo de
desertificação !
A perturbação da
pirâmide animal
Associada á regressão florística e ao processo de
desertificação surgiu a perturbação
da pirâmide animal, originando o aumento descontrolado do número de
animais de médio e grande portes, predadores dos animais de mais pequeno porte
que, por sua vez, também diminuem por falta de alimento já que os terrenos não
são agricultados e se enchem de matos. Assim, os animais de maior porte (lobos,
javalis, raposas), têm necessidade de procurar alimento cada vez mais fora
do seu habitat, estando já a invadir as áreas populacionais das nossas aldeias,
vilas e cidades.
É todo um processo de asfixia da base produtiva do mundo
rural a que a mentalidade urbana vira as costas. Importa informar e sensibilizar
as consciências de todos e mobilizar os meios para o combate ao processo de
desertificação. Está em causa o equilíbrio de toda a sociedade, do ordenamento
do território e do sentido nacional solidário como país. As comunidades urbanas
e rurais podem e devem completar-se e interagirem num progresso com identidade,
na efectiva partilha de valores, afectos, saberes e sabores.
* IFADAP : Instituto Financeiro de Apoio
ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas.
O titulo, o
subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.