Reflexão Democratizar o sistema

J.-M. Nobre-Correia, professor emérito da Université Libre de Bruxelles (ULB)

Nascida no entusiasmo da participação popular, a democracia portuguesa encontra-se em perda de vitalidade, consequência nomeadamente de uma legislação eleitoral que conviria melhorar…

Recente, a democracia portuguesa aprendeu com as experiências de outras democracias europeias. Nomeadamente no que diz respeito à redação da sua carta constitucional e à construção da sua arquitetura institucional. Mas todo e qualquer sistema é perfetível. E, em véspera de eleições autárquicas, parece evidente haver melhorias a introduzir no atual sistema eleitoral.

A primeira destas melhorias seria a introdução do princípio das listas nominais nos boletins de votos (em papel ou eletrónicos). O eleitor passaria assim a ser confrontado, no momento do voto, com a enumeração concreta dos nomes dos candidatos que formam uma lista, e não à abstração de apenas um nome de partido, de coligação ou de formação eleitoral.

Depois, o eleitor deveria poder escolher entre o “voto por cabeça de lista” (aceitando portanto a hierarquização dos nomes que lhe é proposta) ou o “voto de preferência” (votando pelo nome ou pelos nomes que preferiria nesta lista, exprimindo assim indiretamente a sua recusa pela hierarquização proposta ou pela presença de um ou mais nomes na dita lista). Inovação que permitiria contestar o atual poder absoluto das direções dos partidos políticos (e nomeadamente das direções centrais de Lisboa) na constituição e hierarquização das listas.

Este “voto de preferência” traria também como consequência o facto que seriam os candidatos mais votados que viriam a ser os autarcas da junta de freguesia, da assembleia de freguesia, da câmara municipal e da assembleia municipal, e não os que figuravam nos primeiros lugares nas listas submetidas a escrutínio.

Outro princípio absoluto, imperativo, deveria ser introduzido na lei eleitoral : só os cidadãos legalmente domiciliados há 3-5 anos numa freguesia poderiam apresentar-se como candidatos às eleições nessa freguesia. Evitar-se-iam assim os cucos paraquedistas que aterram numa freguesia onde nunca viveram nem contam viver, que pouco ou nada conhecem das realidades locais e das necessidades dos habitantes da região. Gente que se apresenta a eleições locais por razões de puro cálculo de carreirismo partidário ou pessoal, que nada têm a ver com os interesses locais.

O atual princípio da limitação dos mandatos exercidos deveria evidentemente ser mantido e mesmo claramente explicitado. De modo a impedir legalmente a prática das borboletas saltitantes que, depois de terem exercido mandatos numa freguesia ou concelho, venham a descobrir os “encantos” de outras autarquias. Só porque fizeram da vida política o seu modo de vida, o seu fundo de comércio, usufruindo em proveito próprio das vantagens da administração pública e dos dinheiros públicos.

O funcionamento da democracia não pode continuar a ser confiscado em proveito de um poder partilhado entre partidos de um sistema que começa a dar seriamente sinais de esclerose. Nem em proveito de profissionais da política nem sempre recomendáveis dos pontos de vista deontológico, ético e até judicial. Pelo que urge inspirar-se no que de melhor há no funcionamento de velhas democracias europeias e permitir aos cidadãos que se afirmem como tal, reapropriando o funcionamento quotidiano da democracia.

Para que esta reapropriação possa tomar a amplidão desejável, há porém que instaurar o voto obrigatório. Porque o bom funcionamento da democracia não pode ser apenas um direito dos cidadãos, mas também um dever dos mesmos cidadãos. Pelo que há pois que penalizar a ausência do exercício de voto, sem verdadeira razão de força maior. Penalizar não só em termos pecuniários, mas também fazendo figurar tal penalização no dossiê administrativo de cada um. Com mais duas consequências : a invalidação de toda e qualquer candidatura para um lugar na administração pública, e a impossibilidade de quem não tiver um dossiê virgem nesta matéria poder apresentar-se a futuras eleições.

Sem tais inovações, a democracia portuguesa corre o risco de vir a ser, a breve trecho e cada vez com mais evidência, uma caricatura de democracia…