Análise Repensar as estruturas

J.-M. Nobre-Correia, professor emérito da Université Libre de Bruxelles (ULB)


É geralmente aceite o princípio de que há uma forte interdependência entre a qualidade da informação praticada num país e a maior ou menor solidez da sua democracia. E, em Portugal, muito há a fazer em matéria de média…

Os disfuncionamentos da democracia portuguesa são por demais evidentes. Há mesmo quem diga que o sistema político nascido no pós-25 de Abril é uma caricatura de democracia. E isto se a noção disser respeito não só aos seus aspetos institucionais, mas também aos económicos, sociais, culturais e políticos.

Várias explicações são avançadas para este estado de coisas. O claro baixo nível cultural da população, consequência de um ensino deficiente (em termos de duração, primeiro, e de qualidade, em seguida). O facto das estruturas ligadas aos partidos, sindicatos, ordens, fraternidades e demais grupos de pressão terem tomado conta das estruturas do aparelho de Estado. A notória ausência de cultura democrática, depois de uma Primeira República demasiado conturbada, de um Estado Novo salazarista ditatorial e de uma Segunda República nascida mais num clima de injunção excludente do que numa amena e salutar confrontação de posições.

Muitas outras explicações são avançadas e nomeadamente a que diz respeito ao estado dos média e do jornalismo em Portugal. Limitemo-nos aqui a evocar sobretudo as estruturas da imprensa generalista e a relação da imprensa dita “nacional” com a informação regional.

Um posição pouco invejável

Em matéria de imprensa, Portugal ocupa no plano europeu uma posição pouco invejável. Segundo os últimos dados da ENPA (European Newspaper Publishers’ Association), Portugal é o penúltimo classificado numa lista de 29 países no que se refere à difusão de diários a pagamento por mil adultos da população, só a Roménia obtendo pior classificação. E o que é decerto modo ainda mais significativo : Portugal tem um consumo de diários quase 8,5 vezes inferior ao do país que ocupa o primeiro lugar, a Noruega.


Obtendo embora resultados bastante medíocres, os outros países da mesma área cultural (latina, católica), geograficamente próximos (Espanha, França, Itália), conseguem, apesar de tudo, classificar-me bem melhor do que Portugal.

Paralelamente, a configuração da paisagem impressa generalista portuguesa (isto é : de informação geral — política, económica, social, cultural, desportiva,…) é espantosamente disforme. A imprensa diária existe apenas em Braga (dois títulos), no Porto (dois), em Aveiro (um), em Viseu (um), em Coimbra (dois), em Leiria (um), em Lisboa (quatro) e em Évora (um), aos quais há que acrescentar os da Madeira (dois) e os dos Açores (quatro). Dito de outro modo : exceção feita do Diário do Sul em Évora, a imprensa diária só existe na faixa costeira a norte de Lisboa. Todo o resto do país, toda a larga faixa ao longo da fronteira espanhola e todo o sul do Tejo (com exceção de Évora) é totalmente desprovida de imprensa diária própria !

Para acentuar o trágico da situação, os diários pretensamente “nacionais” tem níveis de difusão paga da edição impressa baixíssimos (dados APCT de janeiro-junho 2013) [ii] :
Correio da Manhã 113 097 exemplares
Jornal de Notícias 66 852
Público 24 052
Diário de Notícias 23 473
I 5 251

Ora, esquematicamente, estes diários têm uma implantação em termos de difusão que se situa antes do mais na zona urbana em que são publicados : a Grande Lisboa e o Grande Porto. Pelo que, a difusão deles no Portugal “do interior” é inacreditavelmente diminuta. A passagem em revista dos dados referentes aos dois distritos da Beira Interior, por exemplo, são bastante elucidativos a este propósito (dados APCT de janeiro-junho 2013) :

diário Castelo Branco / Guarda
Correio da Manhã 2 176 / 1 504 exemplares
Diário de Notícias 1 064 / 518
Jornal de Notícias 70 / 230
Público 162 / 116
I 52 / 18

Um “interior” desconhecido

Estes dados de uma pobreza incrivelmente franciscana são consequência de uma distribuição pouco eficiente e particularmente insatisfatória. Mas consequência também de ausência de edições regionais dos diários ditos “nacionais”, edições com cadernos autónomos de informação e publicidade regionais, ou pelo menos de páginas diferenciadas de uma edição regional para outra [iii]. E, como se isto não bastasse, a informação local e regional proveniente do Portugal “do interior” pouca importância merece da parte dos diários ditos “nacional” [iv] : “amor com amor se paga”, os leitores da Beira Interior manifestando o seu desinteresse pelas “aventuras” do microcosmo lisboeta ou, na melhor das hipóteses, do litoral centro-norte.

Esta situação de pobreza informativa poderia evidentemente ser compensada por uma imprensa diária generalista regional. Só que, aqui também, os dados referentes à difusão paga da edição impressa são tristemente baixos (dados APCT de janeiro-junho 2013) [v] :
Diário de Notícias Madeira 10 044 exemplares
Diário de Coimbra 7 444
As Beiras (Coimbra) 5 310
Diário do Sul (Évora) 4 990
Diário de Aveiro 2 967
Açoriano Oriental 2 853

Os outros diários regionais (no continente : Correio do Minho e Diário de Minho, em Braga, Primeiro de Janeiro, no Porto, Diário de Viseu e Diário de Leiria ; nas ilhas : Jornal da Madeira, Correio dos Açores, Diário dos Açores e Diário Insular) não se submetem ao controlo da APCT, o que deixa prever resultados ainda mais baixos.

É evidente que nem só a imprensa diária se encontra em condições de informar corretamente os cidadãos. Também a imprensa periódica (não diária), as rádios, as televisões e os média de informação em linha são de natureza a assumir esta função. Mas a imprensa periódica generalista em Portugal é ela também rara e com fraca difusão. E no caso dos periódicos regionais, sete semanários apenas em todo o país fazem controlar as suas difusões pagas pela APCT (o que traduz a fraca importância destas difusões das edições impressas dos outros), os dois principais sendo precisamente editados na Beira Interior (dados APCT de janeiro-abril 2013) :
Reconquista (Castelo Branco) 10 219 exemplares
Jornal do Fundão 9 862

Quanto a rádios, televisões e média em linha, as iniciativas existentes no Portugal “do interior” são pouco relevantes em termos de informação jornalística no sentido pleno e forte da palavra, haja embora um sem número de iniciativas meio amadoras-meio profissionais que mereceriam mais atenção e apoio da parte da administração pública.

A trágica situação que este conjunto de dados revela, deveria supor da parte dos meios dirigentes do país (governantes, meios políticos, meios económicos, sociedade civil) um empenhamento para procurar fomentar uma nova dinâmica. Para que a informação venha realmente à luz do dia. Para que circule largamente entre os cidadãos. Para que seja um vasto cadinho de debates e de uma sã confrontação de ideias. Para que exerça o papel que é o seu em democracia de contrapoder dos poderes constituídos, para que estes não sejam tentados a abusar do estatuto que é o deles.

O estado desolador em que se encontra a paisagem mediática portuguesa é não só consequência de uma tradição altamente centralizadora da vida pública, particularmente reforçada pelas diretivas da censura salazarista, mas também consequência de três situações importantes : a ausência de tipografias adequadas à fabricação de diários ou semanários de larga difusão fora de Lisboa e do Porto, situação que, sem ser totalmente insuperável, constitui no entanto um factor que em nada favorece a criação de novos jornais ; a estrutura perfeitamente insatisfatória da distribuição da imprensa, sobretudo no Portugal “do interior” ; a quase ausência de uma estrutura de natureza a favorecer a aquisição por assinatura dos jornais (fator favorável à situação financeira dos editores) e a distribuição porta a porta (fator favorável a um acesso matinal fiável aos jornais por parte do leitor).

Todavia, tal situação geral não é de modo algum irreversível. E é tanto mais indispensável e mesmo urgente superá-la que a cobertura da atualidade local e regional constitui uma condição essencial ao desenvolvimento económico e sociocultural do Portugal “do interior” E que a criação de uma dinâmica plural em matéria de informação geral constitui uma condição indispensável ao bom funcionamento de uma democracia moderna pluralista.

Procurar relançar o sector

Há pois que favorecer o lançamento de novos diários e semanários (em papel e/ou em linha) de grande difusão no Portugal “do interior” ; favorecer a criação de edições regionais (em papel ou em linha) dos diários “nacionais” de Lisboa e do Porto ; favorecer a cobertura da atualidade do Portugal “do interior” nos média nacionais.

Uma primeira proposta com vista a progredir neste sentido consistiria em criar um Fundo para a Informação Regional (FIR). Este Fundo seria alimentado por fundos de origem pública : fundos de desenvolvimento regional e outros da União Europeia ; fundos diversos do Estado Português ; outros… Mas também por fundos de origem privada : percentagem das receitas de publicidade das estações de televisão ; percentagem das receitas de publicidade dos diários e semanários gratuitos ; imposição sobre a venda de tecnologias de telecomunicação (telemóveis, antenas parabólicas, redes de cabo, computadores, fornecedores de acesso à internet…) ; imposição sobre as receitas dos operadores de telecomunicações ; contribuições voluntárias de empresas, dedutíveis da imposição fiscal ; contribuições voluntárias de fundações privadas ; outros…

O Fundo poderia ser solicitado pelas empresas de média já existentes, desejosas de tomar iniciativas concretas em matéria de cobertura da informação do Portugal “do interior” e sobretudo em matéria de edições regionais. Mas também pelos projetos de lançamento de novos diários, semanários ou média em linha regionais.

No caso das empresas de média já existentes, as intervenções do Fundo visariam a lançar edições regionais autónomas, dotadas de cadernos (em papel e/ou em linha) específicos inteiramente consagrados à atualidade de uma região precisa ; a aumentar o número das páginas do jornal consagradas à informação sobre o Portugal “do interior” ; a alargar os efetivos da redação com vista exclusivamente a alargar o âmbito da cobertura da atualidade do Portugal “do interior” ; a alargar o número de correspondentes permanentes locais profissionais a tempo inteiro nas regiões do Portugal “do interior”.

Estas intervenções do Fundo seriam feitas anualmente e por um máximo de três anos, sob a forma de empréstimo, sem taxa de juro e sem implicações no plano da imposição fiscal. Estes empréstimos deveriam ser reembolsados ao Fundo no prazo de dez anos a contar da data da atribuição do primeiro empréstimo.

No caso dos projetos de lançamento de novos diários ou semanários regionais (em papel e/ou em linha), os empréstimos do Fundo seriam atribuídos a sociedades especialmente constituídas com o fim de lançar um diário regional ou um semanário regional, dotado de uma edição em linha igualmente consagrada à informação regional e funcionando em sinergia com a publicação em papel. Mas também a sociedades constituídas obrigatoriamente por equipas de jornalistas, de comerciais e de gestores em que cada uma destas três componentes deveriam ser acionistas em proporções definidas por elas próprias.

As modalidades de intervenção

As atribuições de fundos a estas novas sociedades seriam feitas anualmente, durante um total de três anos e excepcionalmente durante um total de cinco anos. O reembolso destes fundos ao Fundo deveria ser feito no prazo de dez anos a contar da data da atribuição do primeiro empréstimo, no caso de um empréstimo de três anos ; ou no prazo de quinze anos, no caso de um empréstimo de cinco anos.

O montante dos fundos atribuídos pelo Fundo não poderia ser superior a 2/3 do capital da empresa, sendo a atribuição dos fundos escalonada anualmente durante três ou cinco anos.

Durante os dez ou quinze anos que duraria o empréstimo (ou durante menos anos, caso o empréstimo tenha sido reembolsado antecipadamente), um representante do Fundo participaria às reuniões do conselho de administração da sociedade na qualidade de observador, mas com direito de veto sobre as decisões de natureza a ter repercussões negativas na situação financeira da sociedade.

Os fundos seriam atribuídos pelo Fundo mediante a apresentação de um projeto editorial, comercial e financeiro circunstanciado da sociedade. Este projeto seria obrigatoriamente acompanhado dos documentos oficiais comprovativos da seriedade de tal projeto, documentos emanados das empresas de que a publicação seria cliente : agência(s) de informação, empresa(s) de impressão, empresa(s) de distribuição, servidor(es) em linha, empresas subcontratantes diversas e outras…

Os projetos seriam estudados e avaliados pela direção do Fundo, composta por elementos independentes de indiscutível competência em matéria de média e mais particularmente em matéria de imprensa.

A atribuição do fundo seria limitada anualmente a um número de projetos limitado e a um montante global igualmente limitado.

Por outro lado, e de maneira geral, a ajuda à imprensa diária e semanária generalista por parte do Estado poderia efetuar-se por uma participação degressiva nos custos do papel ; uma participação degressiva nos custos de impressão ; uma participação degressiva nos custos de expedição ; uma subscrição a preço preferencial de assinaturas para as escolas e associações culturais ; uma inserção obrigatória de publicidades de tipos específicos (a definir) das administrações públicas pagas a preço preferencial.

Mas também as empresas privadas poderiam participar neste apoio à imprensa diária e semanária generalista através da subscrição a preço preferencial de assinaturas colectivas para o pessoal da empresa, fiscalmente dedutível, assim como da inserção publicitária fiscalmente dedutível a partir de um certo número de inserções ou de montante financeiro (a definir).

O apoio à informação regional preconizado deveria idealmente favorecer o lançamento de três ou quatro diários de grande difusão (+/- 25 mil exemplares) no Norte e Centro (dois) da faixa interior do pais, assim como nas regiões a sul do Tejo (um ou dois) ; o lançamento de um ou dois semanários de grande difusão (+/- 15 mil exemplares) por província ou região autónoma onde esta situação porventura ainda não exista.

Para alcançar estes resultados ideais, duas estruturas terão necessariamente que ser criadas : a implantação de três ou quatro tipografias capazes de assumir a produção destes diários e semanários regionais ; a criação de três ou quatro circuitos regionais de distribuição adaptados às necessidades de distribuição capilar destes diários e semanários regionais.

Estes dois tipos de estruturas poderiam ser criados graças à intervenção de fundos públicos : fundos da União Europeia em matéria de reconversão industrial e de criação de emprego ; fundos do Estado em matéria de reconversão industrial e de criação de emprego. Assim como de fundos privados : empresas de imprensa ligadas aos diários, semanários e outros periódicos da região ; empresas de imprensa de Lisboa e do Porto interessadas em lançar edições dos seus respectivos diários na dita região ; empresas exteriores ao mundo dos média interessadas no desenvolvimento da atividade industrial ligada à tipografia.

Os fundos de origem pública seriam reembolsáveis parcialmente e segundo um calendário de natureza a permitir a rentabilização do investimento industrial.

Uma questão premente

A vida económica, cultural, social e política de um país só pode adquirir dinâmica e criatividade se a informação circular de maneira aberta e satisfatória adentro das fronteiras nacionais. Se esta informação traduzir um pluralismo de abordagem e de análises da atualidade, nomeadamente no que diz respeito à geografia do país. E se esta informação fizer eco ao pluralismo de opiniões que atravessam a sociedade, em proveniência das mais diversas sensibilidades e dos mais diferentes quadrantes ideológicos. E só o pluralismo dos média poderá garantir condições favoráveis a esta circulação da informação...

Ao fomentar hábitos de leitura da imprensa junto sobretudo de jovens gerações com razoáveis níveis de escolaridade, tais iniciativas favoreceriam inevitavelmente a difusão dos diários “nacionais” existentes e que bem necessidade têm de alargar os volumes das suas vendas. Enquanto que a criação de média de caráter regional daria certamente uma dinâmica nova à vida social, cultural, económica e política ao Portugal “do interior”… Dir-se-á provavelmente as propostas aqui avançadas de relançamento da informação nacional e regional supõem meios financeiros atualmente pouco disponíveis, dada as dificuldades financeiras que o país atravessa. De qualquer modo, a questão da informação generalista e da paisagem mediática nacional pôr-se-á de maneira cada vez mais premente. E há que afrontá-la se quisermos paralelamente relançar também a noção de democracia no sentido pleno e plural da palavra…

[1] Annual Report 2012, ENPA (European Newspaper Publishers’ Association), Bruxelas, 2013 (?), p. 7 / Media on the Move, p. 30.

[ii] A título de comparação, vejamos o caso da Bélgica, país como uma população idêntica à de Portugal, mas que não dispõe de língua própria e que partilha as línguas de três países limítrofes : 6 milhões têm o neerlandês como língua oficial, 4 milhões o francês e 85 mil o alemão. Pelo que os seus cidadãos podem muito bem decidir de ler diários “nacionais” do país da sua área linguística e não os dos seu próprio país (CIM janeiro-dezembro 2012) :
Het Laatste Nieuws 283 715 exemplares
Het Nieuwsblad 260 535
De Standaard 92 142
De Morgen 51 741
Le Soir 72 904
La Dernière Heure 55 313
La Libre Belgique 38 616

[iii] Peguemos ainda no exemplo da Bélgica : salvo uma exceção, os diários “nacionais” belgas publicam diariamente cinco a treze a edições regionais com conteúdos editoriais e publicitários diferentes. E isto num pais com uma superfície três vezes mais pequena do que Portugal. Ou melhor : numa Bélgica neerlandófona que será umas oito vezes mais pequena do que Portugal e numa Bélgica francófona umas cinco vezes mais pequena. O elemento linguístico é com efeito determinante em matéria de leitura de jornais : os diários de cada uma das comunidades não atravessam praticamente a fronteira linguística com a outra comunidade…

[iv] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, “Compreender a fragilidade para procurar superá-la”, in JJ, Jornalismo e Jornalistas, Lisboa, n° 28, outubro-dezembro de 2006, pp. 6-11.

[v] Um vez mais, vejamos as difusões pagas dos maiores diários regionais da Bélgica neerlandófona e da Bélgica francófona (CIM janeiro-dezembro 2012) :
Het Belang van Limburg (Hasselt) 94 650 exemplares
Gazet van Antwerpen (Antuérpia) 92 784
Sud Presse (Namur) 99 028
L’Avenir (Namur) 87 527