Escritas Filho da casa

Ana Garcia Nobre *

A casa ainda existe. Mas nunca ninguém voltou a dizer que era bonita, não depois do que aconteceu. Ia pensando pela estrada até que a vi. Era uma casa branca, alva como espuma, aprumando-se altiva sobre a encosta da serra no meio de outras casas caiadas que teciam de candura a Beira.
A mesma casa que, inversamente, se tornou feia, assim que a verdade se fez revelar nas paredes brancas a tinta preta, em vez de se esconder no sigilo do interior forte em cimento.

Na aldeia todos fingiam que já se tinham habituado. Porém, quem olhasse para a casa pela primeira vez, sabia intuitivamente que ali deveria ter acontecido qualquer coisa má. Uma coisa excessivamente cruel que, apesar do ultraje evidente, não era mantida em segredo. Assim era a casa. Parecia que marcava a passagem do diabo pela aldeia, que objetivava o pecado. Arranhando o olhar, impunha-se de pé diante de nós. Desafiante como a verticalidade esverdeada das serras em frente. Desafiante como o rio que seguia o curso até ao mar.

Parei e li perigosamente :
“corno”, “filho da puta”, “chifrudo”, “cabrão”.

Li e voltei a ler em alerta. As quatro palavras subiam e desciam pelo exterior da casa, serpenteavam apressadamente as paredes lisas onde se tinham agarrado em profundidade, movidas pela hostilidade que as unia. Numa ordem indomável que se tornava inútil conter, cada uma delas multiplicava-se infinitamente noutras iguais, repetindo-se com urgência no reboco outrora cuidadosamente revestido de branco lavado. Eu olhava e ia lendo, abria os olhos mais ainda, à medida que a ânsia de compreender o que ali tinha acontecido construía impercetivelmente uma história dentro de mim. Porque certas palavras podiam ser ditas, podiam ser pronunciadas, mas nunca eram escritas na aldeia. As paredes não as conseguiam conter.

A casa nem uma só vez ocultava a verdade. Tinha todas as paredes vertiginosamente escritas a tinta, fazendo-a exprimir-se num preto que se fazia medonho pelo tamanho desmesurado das letras que tatuavam o exterior de negro. A casa falava.

Fulgurando no olhar imobilizado como uma ameaça, por fora devia ter sido igual a todas as outras casas que formavam a aldeia: um telhado vermelho, dois andares, os quartos em cima, com o privilégio amplo da varanda, e uma escadaria estreita que levava à sala e à cozinha; à frente da porta, um gato enroscado em dias de sol e vasos em fila. Mas esta visão depressa se desvanecia por causa das palavras que golpeavam as paredes. Isso fora talvez no início, logo no começo, quando os sonhos do dono ainda eram idênticos aos de todos os outros habitantes que viviam na aldeia pois, mais tarde, a casa enredá-lo-ia na tentativa de ser feliz.

Não, a casa não era bonita. Erguia-se agora como uma ave de rapina, vigiando quem passava pela estrada, ainda que todas as janelas estivessem fechadas, os estores corridos e o portão trancado. Presa às palavras que lhe faziam de garras, li-as uma e outra vez até que experimentei dizê-las em voz alta. O tom não era, porém, verdadeiro. A minha voz soava demasiado baixa e sem raiva para transmitir o peso do erro demasiado grave que cada uma daquelas palavras carregava. Retrocedendo no tempo até à hora adivinhada em que se dera a desgraça, os espessos fios de tinta preta que tinham secado nas paredes, enquanto escorriam furiosamente das letras, anunciavam a voracidade feroz de um ato não premeditado – o ódio, a raiva, o desprezo por quem ali vivera.

Eu passava pela estrada, parava e olhava, como se tivesse que esconder o olhar – baixar a fingir a cabeça, espreitar somente de lado, porque a casa enfrentava-me, perscrutava-me nitidamente indiscreta, tão de frente como se fosse eu o objeto que causava repulsa e estranheza.

Quanto mais lia o que ali estava escrito, mais austeras e altas pareciam as paredes que intensificavam a vergonha, endureciam-na, mumificando nelas a censura para sempre. Avançando pela sequência sinuosa formada pelas quatro palavras, a casa indicava o assombro das bocas que amordaçava. E eu queria perceber, entender tudo, sob a necessidade cada vez mais urgente de ouvir a história que a tinha feito adquirir uma natureza bravia.

Fiquei a saber que na aldeia lhe conferiam a importância de um monumento. Embora a casa manchasse de escuro a reputação daquele lugarejo, tinha-se tornado um acontecimento. Numa curiosidade que não sabiam a quem dirigir, havia outros transeuntes que paravam e faziam perguntas como eu. Estacavam, lendo nas palavras o que viam, até que o medo os advertia. Quem quer que tivesse vivido aquilo, não estava mais ali, mas poderia voltar.

Usando para mim a perspetiva do dono do café, ele contou que o dono da casa, um homem da aldeia que tinha sido muito pobre, emigrara há muito tempo. Um homem sem nada. Trabalhou tanto, tão arduamente, que ganhou muito dinheiro e enriqueceu. Movido pela saudade da Beira, usou tudo o que juntou para construir a casa. Todas as poupanças, todo o dinheiro. Assim que terminou a casa, decidiu regressar. Ele e a mulher. Os filhos não vieram. Porém, algum tempo depois, ela deixou-o. Trocou-o por outro homem de outra aldeia. Da fuga à descoberta, aconteceu tudo numa só noite. Ao anoitecer, todas as casas eram ainda iguais, imaculadas de branco como a lua. No entanto, de manhã, quando o dia trouxe para a rua a aldeia inteira, deu-se o espetáculo. Nunca ninguém vira uma coisa assim, pensaram todos atónitos sem entenderem. Mas a honra ofendida não perdoava, muito menos na aldeia. Qualquer coisa dentro dele começara a crescer. Entregue à indiscrição coletiva, o marido traído tinha-se antecipado. Esperou por um momento em que ninguém passava e escreveu ele próprio, nas paredes da casa, o que os outros iriam dizer dele. O Corno, o Filho da Puta, o Chifrudo, o Cabrão era ele. Sentindo que as palavras eram o seu prolongamento, não cessou até que elas enchessem na totalidade as quatro paredes. A seguir, talvez por pressa de acabar de qualquer modo, o dono do café fez-se muito vermelho e interrompeu bruscamente a narrativa, dizendo que já tinha sido há dois anos. Que entretanto o homem já se tinha ido embora da aldeia. Nunca mais voltara e a casa ficara assim. Mas nunca se sabia o que poderia acontecer, concluiu, respirando profundamente.

Ouvi-o quase sem me mexer, enquanto ele falou sem olhar para mim uma única vez. Estava tão imersa na narrativa que me esqueci de perguntar pela mulher do dono da casa. Mas o silêncio absoluto que desceu sobre ela falava tanto como as palavras nas paredes da casa. Fora tudo vivido na aldeia. Embora se continuasse a falar sobre o homem e a casa, não era necessário dissimular. O tempo ia passando e as palavras iam ficando, entranhando-se nas paredes onde batia o coração da aldeia. A casa indicava o pulsar humano de quem a olhava, de quem a via. Ainda que estivesse vazia, continuava viva na imaginação. A casa era eu.

* Ana Garcia Nobre, nascida no Fundão, é professora de inglês-alemão no ensino secundário no Algarve.