Eduardo Maia Costa, magistrado
Os acórdãos do Tribunal Constitucional têm gerado nestes últimos meses reações dos meios políticos, assim como artigos e emissões mais ou menos inflamadas nos média. Mas qual é de facto a sua função ?…
O Tribunal Constitucional foi introduzido na ordem jurídica portuguesa com a revisão constitucional de 1982. Porém, anteriormente já existia um órgão que desempenhava funções idênticas, a Comissão Constitucional, instituída pela Constituição em 1976, embora esta tivesse composição diferente.
Fundamentalmente, o Tribunal Constitucional é o órgão do Estado que fiscaliza a constitucionalidade das leis. O sistema normativo é constituído por um conjunto de atos, a que comummente se dá o nome de “leis”, mas que na realidade compreende atos diferentes (leis da Assembleia da República, decretos-leis do Governo, decretos legislativos regionais, regulamentos, portarias, etc.), que não se situam no mesmo plano, antes numa relação de hierarquia, prevalecendo evidentemente os de hierarquia superior sobre os situados em plano inferior. Mas sobre todos esses atos normativos encontra-se a Constituição, à qual todos eles têm de submeter-se. A Constituição é o vértice da pirâmide normativa do Estado.
A conformidade das leis (no sentido comum) com a Constituição é condição da sua validade. E a função primacial do Tribunal Constitucional é avaliar essa conformidade, e decretar, não se verificando a mesma, a invalidade da norma legal, que deixa de vigorar. Esta função de fiscalização da constitucionalidade das leis é essencial, pois, para a garantia da Constituição, a lei das leis.
Uma aquisição relativamente recente
Esta função fiscalizadora das leis e de garantia da Constituição por parte de um tribunal constitui uma aquisição relativamente recente. Nos regimes liberais do século XIX, o parlamento era soberano (assim se mantendo, por exemplo, na Grã-Bretanha), não estando as suas leis submetidas a qualquer controlo constitucional, mas somente ao controlo político do chefe de Estado.
Aquela função aparece pela primeira vez na Constituição austríaca de 1920, com a instituição de um tribunal constitucional. Essa função já vinha também sendo desempenhada nos EUA pelo Supremo Tribunal. Mas, em qualquer dos casos, a intervenção dos tribunais visava salvaguardar a primazia da constituição sobre as legislações estaduais, dada a natureza federal de ambos os estados.
Foi com as constituições aprovadas após o fim da II Guerra Mundial na Europa ocidental (França, Itália, Alemanha Federal) que a fiscalização da constitucionalidade das leis adquiriu fôlego, tornando-se um elemento-chave do sistema político. Essa fiscalização tornou-se necessária sobretudo por uma mutação de grande alcance na natureza das constituições : o estabelecimento do caráter rígido do texto constitucional. Tal rigidez, não impedindo obviamente a revisão da constituição, significa não só que há limites formais e temporais a essa revisão, como também limites materiais, ou seja, matérias que não podem ser modificadas. E nessas matérias se incluem os direitos fundamentais, que recebem igualmente um notável reforço com essa geração de constituições.
A Constituição portuguesa de 1976 (como a espanhola de 1978) insere-se numa nova geração de constituições que adotam esse património. Ela prevê um extenso catálogo de direitos fundamentais (civis, políticos, sociais, económicos, laborais), protegidos, a par de outras matérias, de revisão posterior. A função de fiscalização da constitucionalidade das leis constitui, assim, uma tarefa garantística fundamental dos direitos dos cidadãos. Mas, ao estabelecer um controlo dos atos legislativos, institui-se como um limite ao poder das maiorias parlamentares. O Tribunal Constitucional desempenha, assim, um importante papel na orgânica constitucional, corrigindo os desequilíbrios a que um parlamentarismo sem freios poderia conduzir.
Um amplo sistema de fiscalização
O Tribunal Constitucional português tem outras funções além da indicada. Desempenha, por exemplo, funções de controlo eleitoral e referendário, e até funções que não têm natureza judicial, como as de controlo partidário. Contudo, é a função de fiscalização das leis o seu núcleo funcional, e é dele que aqui importa tratar.
A Constituição portuguesa prevê um amplo sistema de fiscalização. Esta pode ser abstrata ou concreta. A fiscalização é abstrata quando, independentemente de haver ou não qualquer litígio judicial, haja “suspeitas” sobre a inconstitucionalidade de determinada lei. Essas suspeitas devem manifestar-se num pedido de fiscalização dirigido ao Tribunal Constitucional para que este declare a inconstitucionalidade da lei com força obrigatória geral, ou seja, para que a lei deixe efetivamente de vigorar na ordem jurídica.
Diferentemente, a fiscalização concreta ocorre nos litígios que correm termos nos tribunais. A fiscalização da constitucionalidade das leis cabe, antes de mais, ao próprio juiz do processo, pois a Constituição impõe aos tribunais a recusa de aplicação das leis inconstitucionais (é o chamado “controlo difuso” da Constituição, e nesse sentido no nosso País todos os juízes são juízes constitucionais), com possibilidade de recurso dos interessados para o Tribunal Constitucional. Neste caso, a decisão do Tribunal Constitucional circunscreve os seus efeitos ao caso concreto, contrariamente ao que acontece, como se disse, com a fiscalização abstrata.
Esta fiscalização abstrata pode ser preventiva ou sucessiva. É preventiva quando ocorre antes ainda da publicação da lei. Pela sua própria natureza, a competência para o acionamento do pedido é exclusiva do Presidente da República. A fiscalização sucessiva acontece quando o pedido de fiscalização é feito posteriormente à publicação da lei. Têm competência para o fazer um número restrito de entidades : o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor da Justiça, o Procurador-Geral da República e ainda um décimo dos deputados à Assembleia da República.
Refira-se ainda que existe um outro tipo de fiscalização, por omissão (cujo acionamento é limitado ao Presidente da República e ao Provedor de Justiça), para a apreciação do não cumprimento pela Assembleia da República da obrigação de legislar para tornar exequíveis normas constitucionais que requeiram regulamentação nas leis ordinárias.
Este amplíssimo catálogo de meios de fiscalização da constitucionalidade das leis revela exuberantemente a preocupação dos constituintes de 1976 em salvaguardar a Constituição. Note-se que a fiscalização abstrata sucessiva confere a faculdade do pedido de fiscalização a entidades com estatuto de autonomia, como o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República, como também à própria oposição parlamentar (bastam 23 deputados para que o pedido seja formulado).
Por sua vez, a fiscalização preventiva confere ao Presidente da República um poder verdadeiramente excecional, que não se confunde com o veto político, e que constitui um mecanismo essencial no sistema de equilíbrios e contrapesos entre os órgãos de soberania, idealizado pela Constituição para garantia do nosso Estado de Direito democrático.
Órgão político ou verdadeiro tribunal ?
Tendo embora, como se disse, um papel fulcral no equilíbrio do sistema político-constitucional, o Tribunal Constitucional não é um órgão político, mas sim um verdadeiro tribunal. Não só porque os seus componentes são autênticos juízes, pois têm um estatuto funcional idêntico aos demais juízes (independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade), estatuto esse que é garantia da isenção e imparcialidade da sua atuação, como as decisões que o Tribunal Constitucional profere, em sede de fiscalização da constitucionalidade, são decisões de natureza jurisdicional, ou seja, são decisões que analisam uma pretensão ou um litígio a pedido dos interessados (não tendo portanto capacidade de iniciativa), e proferem uma decisão definitiva sobre o caso, que se impõe com força obrigatória geral, ou somente às partes em litígio, conforme se trate de fiscalização abstrata ou concreta.
Ainda quando aprecia matérias de repercussão direta sobre a ação político-governativa (por exemplo, sobre o orçamento do Estado), o Tribunal Constitucional não abdica da sua condição de tribunal, não intervém nem comparticipa na atividade política ou administrativa. É que o Tribunal Constitucional analisa tais questões exclusivamente sob a perspectiva jurídico-constitucional, nunca sob um ponto de vista político. Isto significa que, na análise a que procede, o Tribunal Constitucional não utiliza parâmetros como a necessidade, conveniência, utilidade ou correção das leis, mas sim e exclusivamente a sua conformidade com a Constituição. Assim, desde que desconformes, o juízo do Tribunal Constitucional não pode ser outro senão o de inconstitucionalidade, sem ponderação de qualquer outro fator. O único juízo de “conveniência” que os juízes podem formular é quanto ao alcance temporal da decisão, já que a Constituição lhes permite que, com fundamento na segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, fixem os efeitos da inconstitucionalidade não desde a publicação da lei, mas a partir de data posterior. Nunca, porém, insiste-se, razões do mesmo tipo podem intervir na natureza da decisão sobre a constitucionalidade.
Um amplo sistema de fiscalização
O Tribunal Constitucional português tem outras funções além da indicada. Desempenha, por exemplo, funções de controlo eleitoral e referendário, e até funções que não têm natureza judicial, como as de controlo partidário. Contudo, é a função de fiscalização das leis o seu núcleo funcional, e é dele que aqui importa tratar.
A Constituição portuguesa prevê um amplo sistema de fiscalização. Esta pode ser abstrata ou concreta. A fiscalização é abstrata quando, independentemente de haver ou não qualquer litígio judicial, haja “suspeitas” sobre a inconstitucionalidade de determinada lei. Essas suspeitas devem manifestar-se num pedido de fiscalização dirigido ao Tribunal Constitucional para que este declare a inconstitucionalidade da lei com força obrigatória geral, ou seja, para que a lei deixe efetivamente de vigorar na ordem jurídica.
Diferentemente, a fiscalização concreta ocorre nos litígios que correm termos nos tribunais. A fiscalização da constitucionalidade das leis cabe, antes de mais, ao próprio juiz do processo, pois a Constituição impõe aos tribunais a recusa de aplicação das leis inconstitucionais (é o chamado “controlo difuso” da Constituição, e nesse sentido no nosso País todos os juízes são juízes constitucionais), com possibilidade de recurso dos interessados para o Tribunal Constitucional. Neste caso, a decisão do Tribunal Constitucional circunscreve os seus efeitos ao caso concreto, contrariamente ao que acontece, como se disse, com a fiscalização abstrata.
Esta fiscalização abstrata pode ser preventiva ou sucessiva. É preventiva quando ocorre antes ainda da publicação da lei. Pela sua própria natureza, a competência para o acionamento do pedido é exclusiva do Presidente da República. A fiscalização sucessiva acontece quando o pedido de fiscalização é feito posteriormente à publicação da lei. Têm competência para o fazer um número restrito de entidades : o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, o Primeiro-Ministro, o Provedor da Justiça, o Procurador-Geral da República e ainda um décimo dos deputados à Assembleia da República.
Refira-se ainda que existe um outro tipo de fiscalização, por omissão (cujo acionamento é limitado ao Presidente da República e ao Provedor de Justiça), para a apreciação do não cumprimento pela Assembleia da República da obrigação de legislar para tornar exequíveis normas constitucionais que requeiram regulamentação nas leis ordinárias.
Este amplíssimo catálogo de meios de fiscalização da constitucionalidade das leis revela exuberantemente a preocupação dos constituintes de 1976 em salvaguardar a Constituição. Note-se que a fiscalização abstrata sucessiva confere a faculdade do pedido de fiscalização a entidades com estatuto de autonomia, como o Provedor de Justiça e o Procurador-Geral da República, como também à própria oposição parlamentar (bastam 23 deputados para que o pedido seja formulado).
Por sua vez, a fiscalização preventiva confere ao Presidente da República um poder verdadeiramente excecional, que não se confunde com o veto político, e que constitui um mecanismo essencial no sistema de equilíbrios e contrapesos entre os órgãos de soberania, idealizado pela Constituição para garantia do nosso Estado de Direito democrático.
Órgão político ou verdadeiro tribunal ?
Tendo embora, como se disse, um papel fulcral no equilíbrio do sistema político-constitucional, o Tribunal Constitucional não é um órgão político, mas sim um verdadeiro tribunal. Não só porque os seus componentes são autênticos juízes, pois têm um estatuto funcional idêntico aos demais juízes (independência, inamovibilidade, imparcialidade e irresponsabilidade), estatuto esse que é garantia da isenção e imparcialidade da sua atuação, como as decisões que o Tribunal Constitucional profere, em sede de fiscalização da constitucionalidade, são decisões de natureza jurisdicional, ou seja, são decisões que analisam uma pretensão ou um litígio a pedido dos interessados (não tendo portanto capacidade de iniciativa), e proferem uma decisão definitiva sobre o caso, que se impõe com força obrigatória geral, ou somente às partes em litígio, conforme se trate de fiscalização abstrata ou concreta.
Ainda quando aprecia matérias de repercussão direta sobre a ação político-governativa (por exemplo, sobre o orçamento do Estado), o Tribunal Constitucional não abdica da sua condição de tribunal, não intervém nem comparticipa na atividade política ou administrativa. É que o Tribunal Constitucional analisa tais questões exclusivamente sob a perspectiva jurídico-constitucional, nunca sob um ponto de vista político. Isto significa que, na análise a que procede, o Tribunal Constitucional não utiliza parâmetros como a necessidade, conveniência, utilidade ou correção das leis, mas sim e exclusivamente a sua conformidade com a Constituição. Assim, desde que desconformes, o juízo do Tribunal Constitucional não pode ser outro senão o de inconstitucionalidade, sem ponderação de qualquer outro fator. O único juízo de “conveniência” que os juízes podem formular é quanto ao alcance temporal da decisão, já que a Constituição lhes permite que, com fundamento na segurança jurídica, razões de equidade ou interesse público de excecional relevo, fixem os efeitos da inconstitucionalidade não desde a publicação da lei, mas a partir de data posterior. Nunca, porém, insiste-se, razões do mesmo tipo podem intervir na natureza da decisão sobre a constitucionalidade.
Em resumo, os juízes do Tribunal Constitucional não dizem se as leis são boas ou más, dizem se estão ou não de acordo com a Constituição. É claro que a interpretação das leis é tarefa árdua, podendo haver, como há frequentemente, lugar a dúvidas e a divergências entre os juízes (e os juristas em geral) sobre a matéria. Contudo, na interpretação das leis, os juízes não seguem critérios políticos, mas sim jurídicos. As divergências que sucedem resultam não da utilização de critérios políticos na análise da questão, mas da diferente argumentação e ponderação dos mesmos critérios, sempre de natureza jurídica. A ciência do direito não é uma ciência exata, pelo que a pluralidade de interpretações é quase sempre inevitável, sobretudo quando as leis são obscuras. O enunciado linguístico contido na lei comporta geralmente uma pluralidade de sentidos. O que é exigível, e que legitima a decisão, é a opção por uma interpretação que resulta da utilização de critérios exclusivamente jurídicos, e que tal opção seja claramente fundamentada.
Não cabe, por outro lado, ao Tribunal Constitucional dar conselhos, sugestões ou recomendações aos órgãos de onde emanam as leis (Assembleia da República ou Governo) sobre como devem proceder no caso de ser decretada a inconstitucionalidade da lei analisada. É a esses que caberá, se o juízo do Tribunal Constitucional for negativo, encontrar as soluções que se coadunem com a Constituição. Assim, não tem sentido “apelar”, como tem sido feito por alguns, ao “sentido de responsabilidade” do Tribunal Constitucional perante certas matérias de um alcance político mais intenso. Não tem sentido pedir aos juízes do Tribunal Constitucional que pensem como “estadistas” (isto é, governantes ou legisladores). O único sentido de responsabilidade que lhes é exigível é o da sua isenção e imparcialidade, da sua fidelidade exclusiva à sua consciência jurídica e à Constituição.
Um modelo muito específico
Sendo indiscutivelmente um tribunal, o Tribunal Constitucional tem contudo características específicas, dadas as suas especiais funções. Essas especificidades referem-se nomeadamente ao recrutamento dos juízes e ao seu estatuto. Assim, contrariamente ao que sucede com os juízes da jurisdição comum, que são nomeados por um órgão próprio em que estão representados os órgãos de soberania e os próprios magistrados, os juízes do Tribunal Constitucional têm uma nomeação de natureza política: dos 13 juízes que o compõem, 10 são designados pela Assembleia da República, pela maioria qualificada de 2/3 dos deputados, e os restantes 3 são cooptados pelos designados.
Esta nomeação política tem sido justificada pela necessidade de conferir uma reforçada legitimidade democrática ao órgão fiscalizador da Constituição, com competência para declarar a invalidade de leis aprovadas pela Assembleia da República. Este argumento, pelo menos em parte, é falacioso, tanto mais que, no nosso sistema, como vimos, qualquer juiz, no âmbito da sua competência, pode julgar uma lei inconstitucional e portanto recusar a sua aplicação. Contudo, é certo que só o Tribunal Constitucional pode julgar uma lei inconstitucional com força obrigatória geral e uma decisão desse tipo tem um inequívoco alcance político, na medida em que anula uma decisão de outro órgão de soberania (Assembleia da República ou Governo). Por outro lado, este sistema de recrutamento permitirá incrementar o pluralismo ideológico e cultural, selecionando juízes com sensibilidades e experiências diferenciadas, o que será enriquecedor na interpretação da Constituição
Mas a grande razão de ser do modelo de recrutamento político dos juízes reside seguramente na rejeição de juridicizar completamente o sistema de fiscalização da constitucionalidade. É essa recusa de inteira juridicização, e consequente despolitização da matéria, com a decorrente entrega a um outro poder (o poder judicial), por definição independente, que explica o modelo adotado, que, diga-se, é o vigente na generalidade dos países, nomeadamente Alemanha, Itália e Espanha.
A nomeação política dos juízes comportaria, porém, enormes riscos de manipulação do Tribunal Constitucional pelos partidos políticos se não tivessem sido adotadas certas regras na fixação do estatuto dos seus membros. E essas regras são globalmente satisfatórias. Assim, os juízes do Tribunal Constitucional têm basicamente, como já se disse, o mesmo estatuto de independência e irresponsabilidade dos juízes dos tribunais comuns, a sua eleição é por maioria qualificada dos deputados e o mandato é de 9 anos (superior a duas legislaturas), não renovável, o que quebra qualquer “compromisso” entre os juízes e os partidos que neles votaram.
Ainda assim, persistem alguns elementos que desfiguram a garantia de independência, que têm a ver com a excessiva influência do “jogo” partidário na seleção dos candidatos a juízes, uma negociação sempre pouco transparente e muito influenciada pelos interesses particulares de cada um dos partidos “centrais” do sistema partidário, que marginalizam da negociação os outros partidos, com prejuízo do pluralismo que em teoria se defende. Essa excessiva partidarização manifesta-se ainda na cooptação dos 3 juízes não designados diretamente, os quais, na realidade, são também escolhidos pelos deputados da maioria, e manifesta-se também na escolha do presidente do Tribunal Constitucional, também “acertada” pelos deputados.
Só o escrutínio público e democrático pode contrariar os excessos partidários na seleção dos juízes.
Diga-se, porém, em jeito de balanço, que o Tribunal Constitucional tem seguido, em geral, um rumo independente, mais intensamente na fiscalização concreta, e no domínio dos direitos civis, onde as generalidades das decisões são proferidas geralmente por unanimidade ou larga maioria. É na fiscalização abstrata, sobretudo na preventiva, que mais se notam as clivagens entre os juízes, com as inerentes “afinidades” partidárias ou simplesmente ideológicas. Mas, ainda aí, sempre as posições são devidamente fundamentadas (e fundamentáveis, embora eventualmente criticáveis), em termos jurídicos, ou seja, são posições juridicamente argumentáveis ou defensáveis, o que traduz o primado do direito sobre o da (simples) política.
Isto significa, afinal, que o modelo do Tribunal Constitucional português é satisfatório, sem prejuízo do flanco que abre à manipulação partidária. Não há, pois, razões para mudar de modelo, apenas para o aperfeiçoar.
Há ainda que referir um ponto. Tem-se falado muito ultimamente nos “privilégios” dos juízes do Tribunal Constitucional, especialmente no especial estatuto de aposentação. Trata-se de uma abordagem completamente demagógica e perigosa. O estatuto especial de aposentação existe para que a independência funcione. Degradar o estatuto remuneratório ou profissional é reduzir as condições objetivas de independência. Não é preciso explicar mais!
Um papel indispensável em tempos de crise
Ultimamente, o Tribunal Constitucional tem sido chamado a pronunciar-se sobre diversas questões de constitucionalidade relacionadas com as leis de orçamento do Estado, ou outras questões com intensa projeção política, porque centradas na execução do programa governamental de combate à crise financeira do País.
A extensão desta crise, que levou ao pedido de assistência financeira às instâncias internacionais (vulgo, troika), criou em alguns (governantes e seus aderentes e simpatizantes) a convicção de que a Constituição estaria “suspensa” ou, pelo menos, de que deveria ser objeto de uma interpretação “flexível” ou “elástica”, enfim, à medida dos interesses da maioria parlamentar.
Os acórdãos do Tribunal Constitucional têm contrariado frontalmente esse entendimento, e afirmado com vigor a vigência e plena validade da Constituição. E essa posição, mais do que as posições concretamente assumidas, algumas das quais pecarão por defeito, nunca por excesso, constitui uma contribuição inestimável para a salvaguarda do Estado de Direito em Portugal.
Na verdade, a salvaguarda da Constituição em tempos de crise é a melhor garantia contra a incerteza, a insegurança, a desconfiança, o arbítrio, que geram um mal-estar social intolerável, se não mesmo o perigo de radicalismos ou roturas antissistémicas. Não se combate a crise com o estado de exceção (declarado ou encapotado), cujos desenvolvimentos são imprevisíveis, mas sim com o respeito pelo primado do direito e pelos princípios constitucionais, que cristalizam a matriz da nossa civilização. A “flexibilização” da Constituição desencadearia um processo de efetivo recuo civilizacional e de degradação da vida dos portugueses, com consequências perigosas a nível da estabilidade e da coesão social.
É em tempos difíceis, não em tempos de tranquilidade, que o papel do direito, e da lei constitucional, se revela mais indispensável.
O título, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.