Há, na praia, uns metros de areia que ninguém ocupa. Mesmo no pino do Verão, quando o espaço é escasso, há uma terra de ninguém, um baldio votado ao desprezo e ao silêncio, como aqueles lugares maninhos e estéreis onde, às vezes, apenas se eleva uma figueira do diabo. Não foi assim sempre.
Mas os que viram e os que contaram depois aos outros anatematizaram o lugar como uma maldição, ou melhor, uma referência topográfica da morte. Os homens dos alugueres dos toldos, como quem edifica uma “alminha”, à beira da praia, sinalizaram o local com as nuvens da desgraça. “Ali onde o ferro despedaçou o homem!” – dizem alguns ainda hoje. É verdade que lá puseram uma cruz, mas no Inverno seguinte o mar logo a levou, como se quisesse sepultar definitivamente a memória do acontecimento.
O dr. Robalo acabou de entrar no elevador. Leva sobre o peito uma pasta negra e sobe ao décimo andar para ocupar o novo gabinete. Chefe dos Recursos Humanos! A secretária abre-lhe a porta. É um espaço amplo, envidraçado, de onde se pode olhar a cidade, até ao rio. Magnífica vista! Passeia a mão pelos sofás, olha a mesinha baixa e acaba afundando-se na fofice de um deles. Fecha os olhos por um momento e pensa nas invejas que a sua promoção desencadeara. “Quantas sacanices foi preciso fazer!”, pensou, como se tivesse um rebate de consciência. Levantou-se e caminhou pela alcatifa. Bateu com os nós dos dedos sobre o tampo da secretária, num pequeno batuque de vitória, e sentou-se na cadeira giratória como quem ocupa um trono. “Diretor dos Recursos Humanos!”, disse baixinho, e logo se pôs muito direito ajeitando o nó da gravata que ficara demasiado solto. A mesa de trabalho tinha os artefactos necessários. Ao lado, os telefones, e mais para a direita o computador, último modelo. Respirou fundo, e, como se quisesse passar um segredo a si próprio, exclamou:
— Chegaste ao topo, Robalinho!
Quem conhecia o seu percurso profissional sabia que a promoção fora o culminar de uma longa biografia de subserviências e de fidelidade canina aos administradores, que gostavam da sua bajulice e do ódio que destilava contra os trabalhadores, que prejudicava, sempre que podia, em favor do grande conglomerado empresarial. À boca pequena, chamavam-lhe o Fuinha e pelos corredores e nos refeitórios corriam peripécias da sua história que retratavam um quotidiano miserável, como se a vida, para lá do seu lado funcionário, não tivesse tempos de lazeres e alegrias.
— Este não sofre, nem goza! — dizia o motorista que todos os dias o levava da empresa para casa e da casa para a empresa.
Mas logo alguém acrescentou :
— Quem ? O Fuinha ? Ele gosta de fazer sofrer… E até goza, olá se goza… Goza que se farta !
Sentado na sua secretária, o dr. Robalo inclinou-se para trás e as costas da cadeira cederam ao peso, suavemente, moldando-se ao corpo. Avaliou o espaço da mesa, abriu e fechou as gavetas, voltou a reclinar-se. Alguns minutos depois, retirou da pasta uma moldura com um retrato de uma mulher belíssima e duas crianças felizes.
— Isto dá bom tom à liturgia do grupo ! — murmurou, enquanto colocava a fotografia em lugar bem visível. — Estes tipos ligam formalmente muito à família…
O sorriso desvaneceu-se quando pensou que ele não fazia parte dessa fauna a quem as mulheres vinham comer à mão. A figura não ajudava nada. Ele bem sabia que os trabalhadores, quando virava costas, exclamavam: “Meia Leca !”, “Fuinha !”. E um dia ouvira mesmo elevar-se de um grupo a ofensa vexatória:
— Cara de cu à paisana !
Ainda se voltara sorrateiramente à procura do autor da infâmia, mas só percebeu um grupo difuso de pessoas e alguns sorrisos matreiros. Pensou abrir ação disciplinar contra incertos, mas logo viu que cairia no ridículo com a tipologia verbal da participação. Aguentou essas como outras ofensas.
Os trabalhadores não o suportavam. A sua condição de seminarista frustrado acompanhara-o sempre e criara nele uma espécie de timidez que o fazia desagradável ao convívio. Na Faculdade, os colegas lançavam a suspeição de ser bufo da pide. E não era ? A dúvida pairou sempre. Mas agora isso até parecia uma medalha : a delação é apontada como virtude do poder. Tantos anos depois, ele não esconde uma raiva sem limites contra o dia em que o país se libertou. Rosna, lança impropérios aos capitães de Abril, destila ódio de estimação aos trabalhadores. “Uma corja !”
Foram essas “qualidades” que o fizeram trepar na empresa. Era um chefe. A fidelidade fizera o resto: pontapé para cima !
E agora ali estava ele a comandar os recursos humanos, no último piso do labiríntico edifício. Tinha o mundo a seus pés, as fichas dos funcionários, alguns segredos do templo. Anotava, com o seu próprio punho um ficheiro paralelo, inventava códigos onde não faltavam segredos de alcova, sobretudo do “staff” sénior. Tinha os seus informadores ou gente que gostava da devassa e se comprazia na cumplicidade sórdida das velhacarias.
— Tenho muita gente na mão! — pensou, num flash-back às pulhices anotadas. — Se um dia se metem comigo...
Levantou-se da secretária e foi até à enorme janela. Bela vista! Mas logo regressou ao centro do gabinete. Era ali o epicentro do seu poder. Recostou-se outra vez, encheu o peito de ar e voltou a olhar a fotografia. Lá estava a família virtual : a mulher muito bela e as duas crianças felizes.
— Bem boa ! — exclamou ele fechando os olhos. — Quem ma dera!
A família era apenas uma mentirinha para consumo. Não tinha, nem fazia tenção de ter. Retirara a foto de uma revista estrangeira, com boas cores e excelente papel, e, num ato de ilusionismo sobre a realidade, criara um universo familiar fictício, mais de acordo com o seu novo estatuto social, para pôr na montra do seu gabinete.
O dr. Robalo exultava com os despedimentos. Um sega-vidas. Eram momentos de grande alegria quando recebia instruções do topo para desencadear o que eles chamavam a cura de emagrecimento : despedir trabalhadores. Agora, com a desculpa da crise, tinha luz verde para todas as patifarias. Procurava os ficheiros e os olhos brilhavam quando identificava as vítimas. Esfregava as mãos de contente.
— Toma lá a merda da indemnização, e vai-te embora !
Era a sua vala comum. E punha-se a imaginar, com um gozosinho que o percorria todo, a densidade dos dramas familiares, as lágrimas, o lar-doce-lar transformado em inferno. Gostava especialmente dessa prática predatória quando o Natal se aproximava. O sadismo tomava conta dele e apressava os despedimentos, media com sorrisos interiores o ar de infelicidade dos homens e mulheres, quando a realidade da perda do emprego lhes caía em cima e subitamente se abria a porta a infernos quotidianos de onde, muitas vezes, não havia saída possível. O que isso representa em sofrimento, às vezes a precária unidade social da família estilhaçada, por inteiro, não é passível de avaliar pelos outros. Ele, no entanto, avaliava, como se fosse um barómetro para medir a infelicidade alheia.
— São as minhas boas-festas de Natal ! — dizia ele olhando a lista dos estragos.
Não esquecera o que tinha acontecido no último Natal. No gabinete, ao canto, mandara instalar uma árvore com luzinhas e muitas bolas coloridas, cumprindo a ordem da administração, que mandava alegrar o ambiente, mas ele não escondia que este tempo o aborrecia, sobretudo porque falava demais numa coisa que ele não tinha, nem queria ter : família. Talvez essa obsessão tenha fabricado nele o gosto de ser impiedoso e insensível aos argumentos humanos e pessoais das pessoas quando lhes indicava a porta da rua. Não lhe viessem com lágrimas de desgraças familiares, dos filhos e das doenças, nem com o choradinho do Natal. Queria lá saber ! E, quando saíam, tantas vezes em pranto, olhava para a árvore incendiada de luz e cor, e dizia, com a voz aflautada, enquanto riscava mais uns nomes :
— Odeio esta palhaçada !
O Natal era um tempo efémero que os bons sentimentos esgotavam rapidamente e o calendário logo entrava na roda do ano e o dr. Robalo na sua rotina do mal.
A sua maior obsessão era a necrologia. No conglomerado empresarial, o grupo herdara trabalhadores envelhecidos de outra empresa, antiga e com muitos anos, que fazia páginas amarelas e outras coisas, ficando com a obrigação de lhes atribuir migalhas de complementaridade de reforma. Desobrigavam-se de outras solidariedades dando nota do desenlace da vida em três linhas de corpo 7, e, às vezes, um anúncio com fotografia e cruzinha.
Ele praticava o garimpo dessa e de outras necrologias, na pesquisa da morte dos velhos funcionários que era preciso abater ao efetivo. Ponto final nas obrigações sociais. Assinalava as notícias, ou os anúncios, a grosso marcador vermelho, e assim cultivava esses cemitérios de papel, repletos de cruzinhas, agradecimentos e missinhas.
Andou anos nessa obsessão necrófila que, a bem dizer, nunca mais o largou.
— Parece que lhes sinto o cheiro — dizia ele, esfregando as mãos, depois de pôr em dia a contabilidade mórbida.
Ainda hoje, quando chega ao gabinete, avança para os jornais diários, arrumados a um canto da secretária, e não resiste à febre da morte. Logo os olhos, com sofreguidão, caem na necrologia e percorrem com gula a publicidade obituária. Já há pouco pessoal a abater, morreram quase todos, mas ele ainda é capaz de assinalar um ou outro nome, por suspeita, e questionar a secretária:
— Oh, D. Alice ! Veja-me lá se este gajo ainda pertence aos nossos recursos humanos !
Uma pequena diversão. Agora, tem outras caçadas a fazer. Analisa as faltas, sempre à espera de alguma injustificada, compulsa os processos disciplinares à procura de uma justa causa (“essa inutilidade da legislação laboral que felizmente está ser liquidada!”), anda a medir a produtividade dos “dispensáveis” que já chegaram aos 50, na esperança de varrer a “velhada”. E ri-se quando ouve as notícias dos doentes terminais que não conseguem obter a reforma.
Olhou outra vez para a fotografia e colocou-a na pequena estante, a balizar códigos e dossiês, em lugar de menor visibilidade.
— Se não desse nas vistas, era já para o lixo ! — pensou, enquanto largou um qualificativo pouco agradável. — Bolas para a ideia da família ilustre !
Saíra-lhe o tiro pela culatra. É que no outro dia, um dos “bosses” viera ao seu gabinete e ficara com o olhar preso à fotografia. E, no meio da conversa, pegando na foto, disparou :
— Que família admirável ! Oh ! Robalo, leve a sua mulher e os miúdos a jantar lá a casa, no fim-de-semana. A minha mulher há-de gostar de os conhecer… Fica já combinado, não admito recusa.
Ele corara. Gaguejou uma desculpa.
— Este fim-de-semana não pode ser. Já temos um compromisso…
Estava com um ar estranho, com suores. O outro temeu que lhe estivesse a dar alguma coisa.
— Não se sente bem ? Veja lá, se é preciso chamar o médico…
Disse que não. Era uma indisposição, coisa leve.
Quando o presidente saiu, não se conteve, de raiva:
— És uma besta ! Trazes para aqui a fotografia de uma gaja tão boa e agora estás lixado… Eu bem vi o olhar guloso do tipo… — exclamou, depois de um longo silêncio. — Onde é que agora vou arranjar uma família para levar a casa do gajo ?
Logo começou a engendrar uma desculpa. “Para já, vou meter férias a ver se isto cai no esquecimento, e depois, quando voltar, digo que me separei e ponto final. Divórcio litigioso, de faca na liga e tudo…”
Foi de férias. Uma chatice no meio da sua solidão. Lá ia para a praia apanhar sol porque a pele bronzeada era um bom cartão de visita, dava uma certa ficha. Cumpria o ritual da areia, ficava ali horas a fio de papo para o ar. Os dias passavam. E ele já ansiava por regressar ao seu gabinete e prosseguir a saga de sacanices, sobretudo agora que tinha condições para despedimentos maciços com a desculpa do agravamento da crise e das instruções da Troika. Eles iam ver !
Nesse dia, chegou tarde à praia. Estendeu a toalha. Tirou os jornais do saco e gastou os olhos pelas gordas. Caminhou por aquele território de palavras até que uma gradual sonolência o obrigou a fechar os olhos. Passou pelas brasas, mas regressou aos jornais. Corria uma aragem fresca. A suavidade da brisa era agradável. Transformava-se quase sempre em vento forte, às vezes passageiro, outras mais teimoso, bulindo incessantemente com a areia.
Nessa tarde foi tudo muito rápido. O vento soprou furioso. Remoinhou numa fatia de areia e levantou os chapéus de sol que cobriam de cores o local. Fez força, soprou tanto que até levou pelo ar, aspirado por um funil de vento, um dos chapéus mais antigos e pesados, com cabo de aço e espigão de ferro. Subiu no ar como um balão e andou uns metros no céu até que caiu, vertical, no peito de um homem, que estava sozinho, estirado na areia. O espigão de ferro, afiado na ponta como bala perfuradora, cravou-se no coração do veraneante.
Um mar de gente rodeou a vítima.
— Está morto ! — confirmaram os socorristas.
Ao lado, caídos, os jornais. Alguém notou que estavam abertos nas páginas da necrologia. Num deles, um anúncio estava assinalado com marcador vermelho. Tinha um grande ponto de interrogação sobre o nome e um rosto.
* Fernando Paulouro Neves fez toda a sua carreira profissional no Jornal do Fundão (fundado pelo seu tio António Paulouro), como redator, primeiro, chefe de redação, em seguida, e diretor, por fim, tendo abandonado estas funções em dezembro de 2012. É por outro lado autor de textos e obras de caráter literário, de ficção e de ensaio.