Editorial A grande miséria

J.-M. Nobre-Correia

Na atual arquitetura do espaço público português, os cidadãos “de província” não dispõem dos mesmos direitos de acesso à cultura que os seus compatriotas da capital nacional…

Três fatores, pelo menos, permitem avaliar o grau de descentralização democrática de uma sociedade. O nível da assistência médico-hospitalar prestada aos cidadãos das diferentes regiões. O facto de estes poderem dispor de estruturas de escolarização e formação que compreendam os diversos graus de cada uma delas. E ainda a possibilidade de usufruírem de um acesso a infraestruturas e a conteúdos culturais de qualidade.

Ora, em Portugal, em todas estas matérias, a situação é a de uma larga concentração na faixa litoral do centro-norte e sobretudo, é claro, em Lisboa. O resto do país não é já propriamente um deserto, como o era ainda há uns trinta anos. Mas a abundância e a excelência concentram-se quase unicamente em Lisboa, sendo o resto do país mera “paisagem”.

Em matéria cultural (infraestruturas, meios, eventos), por exemplo, esta “megacefalia” é intolerável. Mas mais intolerável é ainda que as gentes de Lisboa considerarem isso normal. Pior ainda : a generalidade dos portugueses residentes “na província” interiorizaram isso mesmo como natural, como inevitável.

Considera-se assim normal que a única casa de ópera se situe em Lisboa. Que as grandes salas e companhias de teatro se encontrem em Lisboa. Que os grandes museus estejam localizados em Lisboa. Que as grandes orquestras estejam sediadas em Lisboa. E que as grandes iniciativas e investimentos nas áreas da cultura continuem aliás a ter “naturalmente” Lisboa por palco.

O caso da ópera é de certo modo o mais paradigmático da miséria cultural do país, como do seu obsessivo centralismo. A descentralização que nesta matéria prevalece nos grandes países é significativa. Mas até a pequena Bélgica conta com quatro óperas (Antuérpia, Bruxelas, Gante e Liège). E mesmo a ilha-região que é a Sicília tem três (Catânia e duas em Palermo).

Há pois que interrogar o governo nacional sobre a questão de saber se a “grande Lisboa” terá obrigatoriamente que ser privilegiada em relação à “província”, se as suas gentes pagam mais impostos e deverão dispor de mais direitos do que as desta. O novo presidente do Município do Porto tem razão quando apela à constituição de uma liga das cidades do Norte, uma força de peso para opor ao centralismo de Lisboa, nefasto em termos democráticos. Proposta que deveria motivar outras regiões do país, começando pela Beira e mais particularmente pela Beira Interior.

Mais que um princípio puramente formal, a democracia no sentido forte e plural da palavra supõe uma descentralização que permita aos cidadãos “da província” um acesso idêntico aos direitos mais essenciais, em contrapartida de deveres idênticos aos dos seus compatriotas da capital nacional…