Escritas Os olhos do medo

Fernando Paulouro Neves *

A primeira pancada atingiu-a de surpresa e um fiozinho de sangue escorreu-lhe do canto da boca. Gosto adocicado. À segunda, esquivou-se como pôde.



Desviou o rosto do punho que lhe caía em cima e que raspou na quina do armário. Ele fez um esgar de dor e de surpresa, parou por um momento para olhar o golpe na mão e ela aproveitou a momentânea pausa no combate para rodopiar no espaço minúsculo em que se acoitara, ao canto, e esgueirar-se à roda da mesa da cozinha. Mal teve tempo para equacionar a surpresa do que lhe estava a acontecer. Outro golpe, o terceiro, atingira-a em cheio na face, uma dor aguda quase a deixara sem sentidos. Ele voltou à carga, agarrou-a pelos cabelos, parecia agora segurar matéria inerte. Amedrontou-se com o peso morto que tinha entre as mãos e deixou-a cair, desamparada, no chão. Estaria morta? Lentamente, o pânico começou a tomá-lo, o medo rodeava-o por todos lados. Imóvel, petrificado pela brutalidade. Fugiu dali, a correr. Uma porta bateu, com estrondo.

Eulália ouviu vagamente uma porta que se fechava. E horas depois – quantas ? – despertou do torpor de sofrimento e abriu outra vez os olhos para o mundo. Os sinais da agressão marcavam-lhe o corpo, mal abria um dos olhos, dilatado pelo hematoma, continuou deitada no chão à espera que as forças voltassem. Demorou a recompor-se, e, depois de algumas tentativas, conseguiu finalmente equilibrar-se e ficar de pé. Doía-lhe o corpo todo, mas a dor maior ia até ao fundo da alma. Pensava na infra-humanidade a que a violência remete um ser humano, a pessoa feita quase objecto sem assomo de dignidade. Eulália percebeu, então, na pele, o domínio da irracionalidade, o universo de absurdo que a vida (vida?) podia ser. Tudo fora o epílogo de uma outra espécie de morte anunciada. Morte em sentido cívico e social, já se vê. As frequentes discussões, a ciumeira acéfala, a teimosia dele em querer obrigá-la a deixar o emprego para ficar em casa, contrastavam com a afirmação de liberdade de Eulália, que não abdicava do direito de dispor de si, de construir, na vida de todos os dias, a sua própria biografia, a sua história de vida. Ele amplificou a retórica da ameaça, estilizou a ofensa verbal, começou a perder a cabeça sempre que ela voltava mais tarde do emprego. Até que.

Mais tarde, muito mais tarde, a memória regressava sempre à reconstituição topográfica do drama, angústias de longa duração que voltavam, grudadas à alma como uma lapa, visita de todos os momentos, às vezes fragmentária, outras como um filme em câmara lenta, lavrando uma e outra vez as feridas psicológicas que, por serem interiores e intransmissíveis, não cicatrizavam nunca, pois mais abertas são as feridas na dor que o pensamento fabrica. E ela lembrava-se, então, dos instantes da violência sofrida, que pareciam eternos, e de como a certa altura deixara de proteger o rosto com as mãos, abandonando qualquer atitude de defesa pessoal, enfrentando-o apenas com o olhar, como se um espelho imaginário lhe devolvesse a imagem do ódio. Sim, era isso – olhar apenas, ver a violência em estado puro, decifrar o grão de areia que bestializa as pessoas e as transforma em fazedoras de infernos, mesmo que às vezes sejam climatizados e domésticos.

Lembra-se bem, Eulália, da vontade que se apossou dela, uma força interior de que nem sequer suspeitava, que lhe fez levantar o rosto e olhar, olhar apenas, sem uma palavra ou um gesto, indiferente à agressão iminente. Eram os olhos e só os olhos que falavam. Olhou-o bem nos olhos, fixou-os, entrou por eles dentro como dizem que fazem na selva os caçadores, quando ficam sozinhos diante das feras. Desejou esse confronto visual, rosto contra rosto, para, num olhar que misturou nas suas águas angústia e medo, mostrar toda a perplexidade de que um olhar é capaz, quando alguém descobre que afinal desconhece o outro, sobretudo se o outro for o companheiro de muitos anos (pensava ela : de uma vida).

Naquele momento, nunca mais esquecido, tudo à sua volta lhe pareceu estranho. Foi como se a realidade, o que estava a acontecer, o instante e a hora exacta da súbita violência, fossem pura imaginação, coisa que jamais poderia fazer parte da rotina de um quotidiano até então vivido sem sobressaltos. O que era isto que lhe estava acontecer ? Tudo lhe parecia absurdo. O respirar ofegante do medo, o barulho da loiça a estilhaçar-se no chão, as cadeiras arrastadas, os restos de comida espalhados ao acaso – despojos avulso de uma guerra doméstica, sinais de um combate oculto entre quatro paredes. Tudo tão rápido, sombras de sombras, gritos sufocados, gestos de medo, palavras amordaçadas em silêncios de vergonha.

Sombras de sombras que passam e ninguém vê, pensou outra vez Eulália. A indiferença é o veneno que corre e vai matando lentamente. Toda a gente sabe e finge ignorar, era ela a falar para si, pensando em voz alta, lembrando-se que também sucedera com ela pensar que essas desgraças da violência doméstica só acontecem aos outros, coisas de gente pobre, de margem ou de mau vinho, quando afinal a brutalidade física e psicológica infligida às mulheres está muitíssimo bem distribuída por todas as classes sociais, é o á-bê-cê dos dias, fenómeno traumático transversal a toda a sociedade.

Quantas vezes, quantas ?, conhecera já estes rituais de violência, no registo dos jornais, que depois as televisões amplificam, o sangue a correr por sobre os “brandos costumes”, fatalidades que a vida (ou a morte) encerra, mortes físicas e mortes psicológicas para todos os gostos. Quantas vezes, quantas ?, essa factualidade mórbida, que se tornava notícia de horário nobre quando havia “últimas consequências”, mortes violentas, mulheres decapitadas ou assassinadas à frente dos filhos, desfechos fatais em que às vezes morriam todos, a começar pelo agressor que, depois da obra feita, se suicidava. Crónica de costumes de arrepiar, todos os dias alimentada pelos quotidianos cinzentos de pessoas sombras de sombras.

Eulália olhava agora a realidade com outros olhos. Percebera que a violência doméstica, que vivera dramaticamente, estava cada vez mais presente na sociedade. Muitas vezes, à noite, enquanto fumava um cigarro, gostava de olhar da varanda da casa a imensa paisagem urbana que se estendia no horizonte, milhares de casas e ruas, luzes que acendiam e apagavam, e pensava nos dramas ocultos dentro das paredes das casas da cidade grande, dos choros e dos gritos, e os versos de uma canção do Zeca vinham então ao seu encontro como se a poesia estivesse a querer cantar cidades futuras, e cantava só para si :

a cidade é um chão
de palavras pisadas

e uma lágrima furtiva abria um sulco no rosto porque pensava na comum humanidade que poderia ser a felicidade dentro da cidade, se a urbe fosse um chão de palavras amadas, onde “o puro pássaro”, como um dia pediu um poeta, o Ruy Belo, para o seu país futuro, fosse possível. As luzes da cidade, por momentos, pareciam mais intensas na noite escura. Eulália poisou os olhos num horizonte de luz e descobriu no céu inalcançáveis estrelas, que brilhavam, brilhavam. Por um instante, a palavra esperança voou sobre o clarão da cidade. Eulália sorriu e recomeçou a chorar. As feridas continuavam abertas.


* Fernando Paulouro Neves fez toda a sua carreira profissional no Jornal do Fundão (fundado pelo seu tio António Paulouro), como redator, primeiro, chefe de redação, em seguida, e diretor, por fim, tendo abandonado estas funções em dezembro de 2012. É por outro lado autor de textos e obras de caráter literário, de ficção e de ensaio.