J.-M. Nobre-Correia, professor emérito da Université Libre de Bruxelles (ULB)
Leitores, ouvintes e espectadores acusam os média de alinhamentos políticos. Quando os políticos estão quase sempre insatisfeitos com os média. De facto, a relação entre eles é desde a origem íntima e conflituosa…
em homenagem a Alfredo da Cunha,
no mês do 150° aniversário do seu nascimento *
Ao contrário do que geralmente se imagina, a primeira atividade da prensa tipográfica de Gutenberg (1440-50) não foi a imprensa. Foi sim a de impressos religiosos (Bíblia, indulgências,…), primeiro, de impressos escolares (gramáticas,…), administrativos (avisos, formulários,…) e comerciais (etiquetas, registos de contas,…), em seguida. A imprensa no sentido parajornalístico apareceu mais tarde, em fins do século XV. Com verdadeiras notícias, relatos mais ou menos realistas (batalhas, funerais, festas, vida na corte,…) e elucubrações perfeitamente espantosas (crimes, catástrofes naturais, milagres,…) ou ainda polémicas religiosas e políticas.
Esta primeira geração da imprensa era ocasional, não periódica. Cada nova produção era lançada por ocasião de acontecimentos considerados importantes ou em função da fantasia criadora dos impressores-tipógrafos, num caso como no outro de modo a rentabilizar os equipamentos técnicos dos ateliês. Como recorda Alfredo da Cunha, as Relações (como são chamadas em português) “não tinham data certa (nem sequer provável ou aproximada da certeza) de vir a lume, e não se sucediam em série, surgindo, pelo contrário, inopinadamente, à mercê da importância, singularidade ou estranheza dos acontecimentos que relatavam” [1]. E, tomando como referência o que Fidelino Figueiredo escreveu a este propósito na sua História da Literatura Clássica, o mesmo autor avança um exemplo deste tipo de imprensa ocasional : “as Relações dos naufrágios foram um dos géneros criados pelo teor da vida que entre nós se vivia naquela época, em que eram freqüentes as perdas de navios que demandavam o Brasil e a Índia, por motivo dos ataques dos piratas ou dos inimigos em guerra, e também pelas deficiências da construção naval” [2].
Quando a imprensa adota uma periodicidade, esta é extremamente espaçada : anual (por voltas de 1476), semestral (por voltas de 1588), mensal (talvez em 1597), quinzenal (1605), semanal enfim (1609). Até porque a imprensa periódica é filha dos serviços postais regulares que vão aparecendo na Europa a partir de meados do século XV (e no caso português em 1520, no reinado de Manuel I).
Os diários apareceram muito mais tarde, duzentos anos depois da “descoberta” de Gutenberg, segundo os dados mais recente da pesquisa histórica, e mais precisamente em 1650, em Leipzig, com os Einkommende Zeitungen [3].
Censura, elites e vasto público
De qualquer modo, todos estes tipos de publicações eram dirigidos a um público extremamente reduzido, a uma elite. Porque a grande maioria da população era analfabeta. E porque estas publicações eram de facto produtos de luxo, vendidos a um preço bastante elevado.
Só nos últimos dois terços do século XIX é que imprensa passou a ser progressivamente um produto de consumo corrente. Em duas etapas sucessivas : nos anos 1830 e nos anos 1860. No primeiro caso, a introdução dos anúncios como fonte de receita dos jornais (para além das vendas e das assinaturas) fez que estes pudessem ser vendidos a um preço muito mais barato do que antes e assim ser postos ao alcance de um público com meios financeiros mais modestos. No segundo caso, graças à intervenção de novas tecnologias em termos de impressão e, mais tarde, de composição, as tiragens dos jornais puderam ser aumentadas consideravelmente e, por conseguinte, o preço de custo de cada exemplar fortemente reduzido, alargando assim o número dos que passaram a estar em condições de comprar um jornal, tanto mais que a instauração progressiva do ensino obrigatório tinha permitido aumentar consideravelmente o número dos que se passaram a encontrar-se em condições de saber ler.
Segundo os países da Europa, a “idade de oiro” da imprensa foi atingida na véspera da Primeira Guerra Mundial ou no período entre as duas guerras. Mais ou menos na altura em que a rádio apareceu numa fase experimental (antes da Primeira Guerra Mundial), ganhou um público progressivamente mais vasto no período entre as duas guerras e passou a ser um média de informação cada vez mais importante após a Segunda Guerra Mundial. Enquanto que a televisão aparecida a um estado embrionário nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, mas foi sobretudo a partir dos anos 1960 que passou a ser o média dominante em matéria de informação.
Quando a imprensa, a rádio e a televisão deixaram de ser percebidas como simples prolongamento do média anterior (e no caso da imprensa, o média anterior era o livro) e sobretudo como um mero veículo de divertimento, de distração, os poderes religioso e político passaram a interessar-se por elas. Impondo nomeadamente entraves legais à possibilidade de lançar novos média e procurando controlar administrativa e judicialmente os conteúdos difundidos por estes. Práticas que mais não eram do que adaptações do que tinham sido as medidas adotadas logo nos primeiros tempos da prensa tipográfica.
Com efeito, já em 1475 surgira em Colónia a censura eclesiástica. Em Portugal, a censura preventiva inquisitorial sobre as “obras que toquem em cousa de nossa santa fee”, anunciada em 1537, foi estabelecida em 1540 [4]. E em 1543, o papa Paulo III impusera ao mundo católico o indispensável “imprimatur”. O poder civil seguira-lhe os passos e a censura fora adotada já em 1524 no que hoje chamamos a Alemanha. No caso português, em que a imprensa foi particularmente tardia, Alfredo da Cunha dizia que “a imprensa periódica em Portugal não principiara bem. A poucos meses do seu começo, em 19 de Agosto de 1642, uma lei de D. João IV proibia as gazetas ‘que tivessem notícias do reino ou de fora, em razão da pouca verdade de muitas e do mau estilo de todas elas’. Claro que se referia às ‘notícias’, visto que naquela data não havia senão uma Gazeta, nascida no ano anterior” [5]. E a imprensa portuguesa ficaria depois submetida à censura das autoridades pontifícias, régia e episcopal “exercitadas separadamente pelo Santo Ofício da Inquisição, pelo Desembargo do Paço e pelos Bispos” [6].
Monopólio, pluralismo e monopólio
Para o poder religioso como para o poder político, a população não deveria ter o direito de acesso a toda e qualquer “literatura”, pelo que convinha controlar previamente que era suscetível de ser impresso : a informação é claramente percebida como um instrumento indispensável às gentes do poder para que possam exercer este poder. Pelo que o “privilégio” foi instaurado em favor de indivíduos dignos de confiança do poder, que passaram a ser os únicos autorizados a aceder à profissão de impressores-tipógrafos (que na altura eram também editores, livreiros, vendedores de jornais e muitas das vezes até autores).
Mas o poder político irá mais longe, tomando em grande parte dos casos a iniciativa do lançamento dos primeiros jornais periódicos. Citemos apenas dois casos célebres. O de La Gazette, semanário lançado em 1631 em Paris por Théophraste Renaudot, um protegido do cardeal Richelieu, primeiro ministro de Louis XIII, estes dois últimos personagens não se privando de escrever de maneira anónima no jornal. E também o caso da Gazeta Nueva, criada em 1661 em Madrid por Francisco Fabro, secretário de Juan José, primeiro ministro e meio-irmão de Carlos II.
Com a proliferação da prensa tipográfica através do continente, o controle da imprensa foi-se tornando mais difícil. Até porque países havia, como a Holanda ou o principado de Dombes (que só integrou a França em 1762), que se especializaram em imprimir e exportar mais ou menos clandestinamente jornais para os países onde a liberdade da imprensa era impossível. Mais tarde, com a grande vaga liberalizante do pós-Revolução francesa e a industrialização da imprensa no século XIX, não houve partido político, sindicato, igreja ou associação que não dispusesse do seu jornal, do seu “órgão oficial”, e até mesmo de diversos periódicos arautos das correntes internas destas organizações…
Quando, no período entre as duas guerras mundiais, a rádio começou a ganhar audiência, as autoridades políticas de vários Estados europeus decidiram tomar o controle da situação, adotando uma legislação restritiva na matéria e não autorizando a criação de rádios privadas. Foi o caso, segundo modalidades diversas, na Grã-Bretanha, da Alemanha e da Itália, por exemplo. Noutros países, rádios públicas e rádios privadas coabitaram, como na Bélgica e na França, mas também nas ditaduras salazarista e franquista. Situação que deu lugar a um monopólio de serviço público em toda a Europa após a Segunda Guerra Mundial, a presença de rádios privadas só sendo tolerada e estritamente controlada em França e mais modestamente na Itália, para além da estranha situação pluralista em Portugal e em Espanha.
Ora, foi este monopólio de serviço público da rádio que foi quase sempre encarregado de lançar a televisão ao estado experimental pouco antes da Segunda Guerra Mundial e de maneira alargada depois. Pelo que, após a Segunda Guerra Mundial, a rádio e a televisão passaram a funcionar em regime de monopólio de serviço púbico um pouco por toda a parte na Europa. Enquanto que a rádio, primeiro, e a televisão, em seguida (sobretudo a partir dos anos 1960), passaram a ser sucessivamente os média de informação dominantes, mais ou menos estreitamente controlados pelos partidos políticos que detinham o poder central ou regional (segundo especificidades decorrentes das tradições político-culturais de cada país, mais ou menos “estatistas” ou autonomistas).
A perda de influência dos partidos
As entradas em cena da rádio e da televisão como média de informação fizeram perder à imprensa o estatuto privilegiado de anunciadora das notícias. E o facto de os cidadãos passarem a estar confrontados a diferentes fontes de informação (imprensa, rádio e televisão), e não apenas ao “monopólio” do jornal comprado lá em casa, fez progressivamente desaparecer os órgãos dos mais diversos partidos políticos e demais grupos de pressão, que passaram a ser percebidos como praticando claramente um jornalismo militante e uma informação enviesada.
Com a desmonopolização dos sectores da rádio e da televisão nos anos 1970, este ascendente dos partidos no poder foi perdendo terreno, dada a nova proliferação dos média audiovisuais e concorrência exercida pelo sector privado em matéria de informação. Mas também porque uma nova cultura pós-Maio de 68 e uma generalização da formação superior dos jornalistas favoreceram uma clara tomada de distância em relação às organizações políticas. O que levou até a quase totalidade dos países da Europa ocidental (sendo a Espanha um exceção notória) a criar instituições que servem doravante de interface entre as rádios e televisões de serviço público, de um lado, e os governos centrais ou regionais, do outro. Do género da portuguesa ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social), sendo os poderes destas instituições mais ou menos vastos ou restritos, segundo os países.
Mas, se a informação deixou largamente de poder ser controlada ao nível da difusão, empresas, instituições, partidos e homens políticos vão tentar controlá-la ao nível da colecta, da fonte. Vão assim aparecer, a partir sobretudo dos anos 1960, os mais diversos adidos de imprensa e direções de comunicação. De modo a levarem as empresas de média a considerarem que os jornalistas já não tenham que consagrar tanto tempo e esforço à colecta da informação, recebendo-a doravante devidamente confecionada, da parte das fontes que estão vivamente interessadas nela.
Esta constante da história das relações meio político-meio mediático é fundamentalmente posta em causa com o aparecimento da internet como média de informação na segunda metade dos anos 1990. Até porque, pela primeira vez, os meios políticos no poder deixaram praticamente de poder controlar a difusão da informação. O que os tem levado a uma sobreprodução de eventos e de comunicados de modo a suscitar a atenção dos média. Até porque todos os partidos políticos consideram desde sempre que estes não falam suficientemente deles, não dão suficientemente importância às suas atividades, iniciativas e tomadas de posição. E que, de qualquer modo, mesmo quando falam, não falam suficientemente ao gosto dos responsáveis do partido na origem dos eventos ou dos comunicados…
Um eterno desamor inevitável
Este eterno desamor é tanto mais facilmente compreensível que a vocação primeira de um média de informação, se quiser ter sucesso, é de tomar em consideração os interesses do seu público (leitor, ouvinte ou espectador, e agora até internauta) e não os que estão interessados em “produzir” informação. Mas também de assumir claramente a função de contrapoder, impedindo que os poderes constituídos (à luz do dia, “discretos” ou obscuros), sejam eles político, económico, social, cultural, desportivo ou outro, tenham muito naturalmente tendência a abusar desse poder, ultrapassando os limites do que é admissível num Estado de direito e numa democracia no pleno sentido da palavra…
Os políticos precisam absolutamente dos jornalistas para comunicarem aos eleitores os seus projetos, as suas iniciativas, as suas tomadas de posição, as suas reações. Os jornalistas precisam absolutamente dos políticos para poderem dispor de uma vasta matéria de natureza a interessar os seus públicos. Só que a conceção que uns e outros têm do jornalismo, da informação e dos centros de interesse dos cidadãos é muitas das vezes totalmente oposta e até mesmo inconciliável [7]…
* Nascido no Fundão em 21 de dezembro de 1863, Alfredo da Cunha foi diretor do Diário de Notícias (1889-1919), tendo sucedido ao fundador, Eduardo Coelho, seu sogro. Homem extremamente ativo e com uma importante produção literária, Alfredo da Cunha foi também um dos primeiros historiadores da imprensa portuguesa.
[1] Alfredo da Cunha, Elementos para a História da Imprensa periódica portuguesa (1641-1821), Separata das ‘Memórias da Academia das Ciências de Lisboa’ (Classe de Letras — Tomo IV), Lisboa, 1941, p. 35.
[2] Alfredo da Cunha, Elementos…, p. 36-37.
[3] A literatura dominante continua porém a dizer que foi The Daily Courant, em 1702, na Inglaterra, o primeiro diário da história. Quando até se sabe hoje que, antes dele, na Inglaterra, foi publicado o Norwich Post, em 1701…
[4] Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da inquisição portuguesa 1536-1821, Lisboa, A Esfera dos livros, 2013, pp. 33 e 36.
[5] Alfredo da Cunha, Elementos…, p. 4.
[6] Alfredo da Cunha, Elementos…, p. 118.
[7] Ver sobre esta temática geral J.-M. Nobre-Correia, Histoire des Médias en Europe, 2 volumes, 12a edição, Bruxelas, PUB, 2010, 400 p.