Pedro Guedes de Carvalho, professor na Universidade de Beira Interior (UBI)
A Beira Interior é há demasiados anos vítima de um problema estrutural que supõe que se adotem respostas políticas adequadas e obviamente diferenciadas…
Tudo o que nos tem vindo a ser dito nos últimos dois anos sobre a miserável situação do país criou um duplo efeito de revolta e anestesia cujas consequências estão ainda por avaliar com rigor. A revolta, de tão grande e espalhada que está, provocou uma espécie de efeito anestésico por excesso de pressão ; uma espécie de efeito semelhante ao que tem o gelo quando aplicado durante muito tempo numa parte dorida do corpo — primeiro sente-se frio e depois não se sente mais nada por anestesia muscular profunda. E quando o efeito do gelo passa, voltamos a sentir os músculos lentamente ; mas para se voltar a ter o bem-estar desejado exigem-se alguns exercícios específicos para que a recuperação seja efetiva.
Faz agora cerca de 40 anos que, enquanto jovem finalista de Económicas no que hoje é o ISEG (Instituto Superior de Economia e Gestão), escrevi o meu primeiro trabalho sobre “Assimetrias Regionais em Portugal" no âmbito de uma disciplina designada como TAP (Teorias e aplicação de planeamento), magistralmente lecionada pela professora Manuela Silva. Aprendia eu nessa altura, de forma exclusivamente teórica, quão dicotómico era já o nosso país e como já então se fazia notar a falta de empregos, associada a uma subida generalizada de preços (vulgo inflação) ; ao mesmo tempo que os jovens licenciados tinham um primeiro emprego quase garantido, tão poucos eram os afortunados que podiam frequentar a universidade e que tanta falta fazia para compensar muitos outros que, já licenciados ou interrompendo as suas licenciaturas, não iam para o mercado de trabalho mas sim para a guerra colonial.
Atenuar as assimetrias regionais
Os emigrantes (sim, sempre os houve) pertenciam essencialmente ao grupo de trabalhadores agrícolas e às indústrias que remuneravam mal e provocavam a sua saída "a salto" em busca de vidas e salários melhores ; o Estado fazia de conta que fiscalizava essas saídas mas como forma de tapar os olhos e como quem diz : não queremos que os portugueses saiam. Ora essa emigração dava um jeito especial ao governo para descomprimir o mercado de trabalho, baixando a taxa de desemprego ao mesmo tempo que compensava o défice comercial com as remessas de poupanças, vulgarmente designadas por remessas de emigrantes.
Já nessa altura estes emigrantes eram sobretudo residentes nas regiões do país menos desenvolvidas e raramente bafejadas por investimentos públicos e privados. Essas regiões eram o Norte-Minho, o Norte-Trás-os-Montes, as Beiras e o Alentejo. Nessa altura havia empregos industriais apenas na área de Lisboa, Setúbal e Sines e uns pequenos focos de emprego nas zonas de Braga-Guimarães e da Covilhã, estas últimas ambas com a ainda potente indústria têxtil e de lanifícios. Tudo o resto era residual.
Sentiu o ministro Veiga Simão, nessa altura, que a educação e ensino superior poderiam travar esta espiral crescente de sangria populacional assim como evitar uma excessiva concentração das famílias exclusivamente nas áreas de Lisboa e Porto, para onde se deslocavam os mais novos em busca de novas oportunidades, desequilibrando ainda mais o território. Para isso seria necessário construir escolas novas de ensino superior público no eixo interior do pais nas cidades que ainda tivessem população para fixar e que seriam Vila Real, Covilhã e Évora. O raciocínio era simples : se houvesse ensino superior no interior, os jovens seriam menos tentados a migrar para o litoral e as indústrias e atividade económica existentes acabariam por contratar esses jovens qualificados que se fixariam nessas regiões polarizadoras, constituiriam as suas famílias e ajudariam a suster a bipolarização demográfica e económica do país, contribuindo para atenuar as então já designadas assimetrias regionais.
Mas já nesse tempo do tal primeiro estudo que elaborei, chamava a atenção que a localização desses e outros investimentos públicos só seriam eficazes se realizados em locais onde existisse uma base económica e demográfica mínima para potenciar o crescimento e desenvolvimento ; de outra forma os investimentos poderiam não passar de elefantes brancos ineficientes, um desperdício.
Mas assim não entendeu o poder político que, já então cedia aos lóbis locais que exigiam universidades e escolas superiores em tudo que era cidade, pressão particularmente forte sobretudo nas capitais de distrito. E assim se desatou a construir ainda mais escolas politécnicas nas capitais de distrito : Bragança, Guarda, Viseu, Castelo Branco, Portalegre e Beja, sem qualquer critério de racionalização económica ou outro que não fosse o da capital de distrito não poder ficar atrás. Capitais de distrito que muitas vezes não passavam de puras invenções administrativas. Pior ainda : construíram-se edifícios escolares sem missão claramente definida que, em muitos casos, mais não fizeram que copiar o ensino universitário, o que duplicou a imensa oferta formativa de modo descontrolado em quantidade e sem a qualidade desejável para ensino superior técnico de estudos aplicados.
Uma incapacidade congénita
Este "não querer ficar atrás" que nos é muito peculiar como povo, tem como base de raciocínio uma virtual equidade de acessos e oportunidades e pode descrever-se com a frase "o que temos nós a menos que os outros ?"
Esta característica cultural, dizia, é baseada no individualismo e numa incapacidade congénita de nos conseguirmos governar autonomamente. Os exemplos poderiam multiplicar-se quando temos a história cheia de casos de enorme sucesso no estrangeiro de portugueses que, na sua terra, nunca o conseguiam obter. Se as pessoas são as mesmas, a causa das coisas só pode ser a capacidade diminuta de organização que têm a maioria dos governantes e gestores no nosso país ; não somos bons na gestão pública e seremos pouco melhores na gestão privada. Na gestão pública, porque não sentimos os recursos como nossos e achamos que alguém depois virá pagar-nos os erros ; na privada, porque sempre fomos muito protegidos das verdadeiras condições exigentes de concorrência e competitividade nacional e sobretudo externa. O segredo que foi a alma do negócio desgraçou-nos a capacidade empreendedora e a vontade de correr riscos. Daí que muitos dos nossos mais "arriscados" cidadãos decidiam sempre partir para locais onde habitualmente tinham sucesso.
Pois bem, é neste contexto que gostaria de enquadrar esta contribuição para a revista Notas de Circunstância : a nossa região da Beira Interior está hoje a sofrer as consequências de medidas muito antigas tomadas com o objectivo de andarmos muito anestesiados e crentes de que o dinheiro fácil nunca nos faltaria e de que as condições de trabalho e sucesso viriam sem grande esforço consciente e intencional.
Para entender este fenómeno e esta característica cultural profunda teremos que recuar aos tempos medievos em que o rei, para guardar o seu reino, entregava algumas terras aos senhores que aí ficassem a defendê-las dos "invasores". Daí que os nossos territórios de fronteira fossem sempre destinados à defesa do território físico e nunca a se desenvolverem ou povoarem. Todo o povoamento se localizou sempre na corda urbana de Braga a Setúbal. E isso é inexorável, não se pode mudar muito. As mudanças que se verificam prendem-se com liderança e pujança inter-regional como são os casos de Leiria e Aveiro que disputam com Coimbra a liderança regional, fazendo com que esta tenha sofrido um sério revés populacional e económico nas últimas décadas. Mas essa disputa nada tem de semelhante no interior (região em perda) e não tem qualquer viabilidade competitiva uma vez que a perda de população é efetiva e não resultante apenas de migrações. É por isso um problema estrutural que precisa de respostas políticas adequadas e obviamente diferenciadas.
Não sou dos que defende as discriminações positivas para quem se deslocalize para o interior porque isso vai criar estrangulamentos de mercados mais tarde ou mais cedo. Prefiro que não se penalizem mais as pessoas que optam por ficar no interior, o que não é o que tem vindo a acontecer quando se assiste à retirada sucessiva de estruturas instaladas que ainda permitem os níveis mínimos de qualidade de vida. Refiro-me a centros médicos, escolas, serviços públicos essenciais, transportes e acessibilidades e obviamente ao ensino superior.
Desenhar metas claras
As políticas públicas deveriam por isso ter sido desenhadas com metas muito claras que não podem estar dependentes das crises conjunturais. Como exemplo, não se pode dizer na teoria que é necessário criar condições de maior mobilidade e inovação para agricultura e demorar quase 30 anos a concluir um regadio ou a construir estradas rápidas. Pior ainda, depois de as construir com base em fundos de coesão territorial, não se podem lançar taxas de utilização semelhantes às das regiões que não se encontravam dentro dos limites dessa classificação e muito menos ainda transformarem-nas nas mais caras do país.
Os erros eram evitáveis no passado e, por essa razão, têm que ser publicamente assumidos, encontrando propostas de remediação que não podem ser a da dupla penalização. Não se pode admitir que muitos de nós, que não tivemos autoestradas durante anos, tenhamos que considerar agora as autoestradas todas do país como um luxo e desatar a cobrar taxas exorbitantes naquelas que foram construídas por razões de equilíbrio territorial. Não se podem tratar a A25 e a A23 da mesma forma que se tratam a A29, A17, A8 e por aí fora, uma vez que, estas sim, são duplicações de alternativas existentes. No fundo é a conceção errada de que "temos de tratar todos por igual" quando à partida nem todos eram iguais.
Este tem sido o erro permanente das políticas regionais : não serem capazes de perceber que situações diferentes não podem ser tratadas de igual modo.
E não me venham com a conversa fiada que isso seria tratar as gentes do interior de forma privilegiada ! Se assim acharem os políticos nacionais, então mudem-se com todos os serviços que dirigem para cá, onde as pessoas são melhor tratadas.
Infelizmente o problema é mais sério. Temos todos de aprender o que é coesão e solidariedade humana e territorial. Muitas regiões da Finlândia e do Canadá são muito pouco povoadas ; contudo o Estado garante os básicos a todos que optam por assim viver. Mas obviamente que não têm hospitais, serviços de bombeiros, repartição de finanças, uma escola de ensino secundário ou superior em todas as cidades de 40 em 40 quilómetros. Mas todos têm cobertura de internet e meios de comunicação terrestres ou aéreos para acudir a situações delicadas.
Não posso querer ter o melhor dos dois mundos (sol na eira e chuva no nabal). Mas podemos exigir dignidade e respeito quando durante anos decidimos viver com menos oportunidades mas sempre lutámos por condições dignas de vida. E disso não abdicarei !
O título, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.