Análise O génio de Andrade

Arnaldo Saraiva, professor jubilado da Universidade do Porto [*]

A poesia de Eugénio de Andrade goza de uma quase unanimidade que se explica por uma série de razões. Razões que põem em evidência a sua diferença e a sua especificidade…


A poesia de Eugénio de Andrade sempre foi — mas nas últimas décadas isso tornou-se bem mais notório — uma poesia frequentada e prezada por poetas e críticos de diversas idades e tendências, assim como por leitores adultos e jovens, cultos e não cultos. Tal unanimidade, ou quase, não se explica só pelo que vagamente se diria a sua requintada qualidade artística — veja-se o que acontece com a poesia de invulgar qualidade que escrevem outros poetas, como Herberto Helder. Explica-se por uma série de razões, que aliás também podem evidenciar a diferença ou a especificidade da poesia de Eugénio de Andrade.

Notemos, antes de mais, que se trata de uma poesia pouco ou nada datada, que não fez concessões a preceitos ou maneirismos de correntes estéticas contemporâneas, fossem elas a presencista, a neo-realista, a surrealista ou a concretista, a experimentalista e a pós-modernista. Homem convivial e leitor atento, Eugénio de Andrade conheceu bem essas correntes, mas no plano da forma ou do conteúdo não retirou delas nada de essencial que não tivesse já encontrado na poesia da tradição oral, nalguns trovadores, em Camões, Pessanha e Pessoa ou em estrangeiros como Rilke, Lorca e Cecília Meireles. E o essencial para ele talvez pudesse reduzir-se ao cuidado tratamento rítmico ou fono-melódico do verso e do poema, que não descurava a cor das vogais nem a energia das sílabas (palavra não por acaso bem do seu gosto), à tensão enunciativa de cariz oralizante, à expressão elíptica ou condensada das emoções, sobretudo as de teor amoroso, à inventiva imagística, ao fascínio do concreto e do elementar, e à pregnância simbólica (com desprezo pelo meramente anedótico, tão cultivado pelos surrealistas).


Surpreendente e paradoxal

Notemos em segundo lugar que se trata de uma poesia surpreendente e paradoxal pelas suas opções ou pelas suas rejeições. Inscrevendo-se claramente, desde a primeira hora (desde os rasurados Narciso e Adolescente), na tradição lírica portuguesa, sobretudo elegíaca e amorosa — sem nunca se interessar pelo épico moderno que encontramos noutros poetas, de Pessoa a Ruy Belo —, a poesia de Eugénio de Andrade recusa também claramente algumas constantes dessa tradição : e não só o solene e o enfático, o eloquente e o decorativo, mas também o sentimentalismo à flor da pele, o fatalismo, o saudosismo, o religiosismo. E sendo uma poesia séria, muito raramente atravessada por alguma insinuação cómica ou irónica, em vão buscaremos nela outros lugares comuns da lírica tradicional : os arroubos patrióticos ou patrioteiros, as inquietações metafísicas, as tiradas filosóficas, a crítica social, os jogos conceptuais à maneira dos poetas do barroco ou do Pessoa ortónimo. O enunciador de Eugénio de Andrade ignora o “tom alto e sublimado”, repele o discurso autoritário ou arrogante, assume com frequência a sua precariedade (“Piedade,/também eu sou mortal”), posiciona-se sempre diante do leitor — ou dos personagens, ou das coisas — como uma testemunha, um cúmplice, um companheiro ou um irmão discretos (note-se de passagem que Eugénio não teve irmãos), preferindo pois as modalidades e os registos da melhor comunicação coloquial ou dialogal. E optando sem hesitação pelo lado do sentir, não do pensar — o corpo “canta sem razão”, lembra o poema “Com um verso da «Ceifeira»” de Ofício de Paciência —, foge no entanto à expressão sensacionalista, à tradução impensada ou ligeira de sentimentos ligeiros ou impensados, também porque convoca o exercício lento e atento dos sentidos, sobretudo os da vista, do ouvido e do tacto.

Notemos em terceiro lugar que a poesia de Eugénio de Andrade é habitada por personagens positivos ou simpáticos, que polarizam e estimulam relações harmónicas e afectivas : a Mãe, a Criança, o Jovem ou o Adolescente, o Pastor, o Criador, não o do mundo, que é ignorado, mas o que cria no mundo e com o mundo (o poeta, o músico, o pintor, entre outros) e, sobretudo, o Amante. Eugénio de Andrade filia-se evidentemente na linhagem do Camões que tanto admira : é um poeta do amor — por sinal de um amor que, como regra, se afirma sem as contrariedades ou contradições do camoniano, mas que, como este, não se quer mais idealizado do que realizado, e, contra a moral de uma tradição beata, proclama a ética e a estética do hedonismo ou do erotismo, e defende os direitos “sagrados” do corpo, do corpo que, vê-se bem numa tese de José Manuel de Magalhães Teixeira, comparece euforicamente em toda a poesia eugeniana.


Um “aqui e agora” bem humano

Notemos em quarto lugar que Eugénio de Andrade gosta de se situar num “aqui e agora” bem humano e concreto, mesmo que frágil e fugitivo. Sem apego ao passado, que “é inútil como um trapo”, como diz o último poema de Os Amantes sem Dinheiro (reformulando o provérbio “Velhos são os trapos”), e sem projectos metafísicos nem apelos transcendentais, o tempo que lhe interessa é sempre o tempo habitável ou habitado do presente, ou então o futuro, muito próximo, do desejo urgente (“é urgente o amor”). Compreender-se-á por isso a frequência da marcação do tempo e das suas mudanças — dias, meses, estações, que se recusa a maiusculizar —, como se compreenderá o privilégio do tempo mais luminoso e caloroso do Verão — melhor, do “verão”.

Notemos por fim que o “aqui” de Eugénio de Andrade é o de uma confluência elementar, onde cada elemento pode ser diversamente potenciado, e veicular imagens flutuantes ou permutáveis de plenitude e de carência, mas onde a disforia nunca chega a anular a expectativa eufórica. Terra e ar, água e fogo conjugam-se para enquadrar e desafiar o homem, que veio da terra (húmus), que vive “rente ao chão”, mas que pode, pelo amor ou pela criação, elevar-se à condição divina. O fascínio dos mitos cósmicos convive assim na poesia eugeniana com o fascínio dos mitos solares. As insistentes referências dessa poesia à luz, aos pássaros, à vegetação definem-na como uma poesia vertical, embora de espécie diferente da de Roberto Juarroz : ela aponta para o alto, mesmo quando, como um personagem de Beckett, o homem de que fala não consegue libertar o seu corpo da terra em que acabará por tombar, e com que acabará por se confundir.

Eis as razões principais que, a meu ver, justificam a unanimidade, ou quase, com que vem sendo recebida, nacional e internacionalmente, a poesia de Eugénio de Andrade, que já há muito se perfila como um clássico. Outras haverá, por certo. Mas talvez nem todas juntas possam explicar bem o que, se é permitido o trocadilho, poderemos chamar o génio de Andrade…


[*] Nota da Redação : Arnaldo Saraiva nasceu em Casegas (Covilhã) e reside no Porto. Eugénio de Andrade nasceu na Póvoa de Atalaia (Fundão, 1923) e faleceu no Porto (2005).


O subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.