Reflexão A Constituição no fio da navalha

Eduardo Maia Costa, magistrado

De há meses a esta parte, uma certa direita neoliberal, portuguesa e estrangeira, tem atacado repetidamente o Tribunal Constitucional como a Constituição. Uma Constituição que é preciso absolutamente defender…


A época que vivemos é certamente uma das mais negras da nossa história, pelo menos da nossa história constitucional. Vivemos sob tutela estrangeira, prisioneiros de uma estratégia ideológica delineada pelos nossos credores, aproveitada internamente pelos que há muito esperavam o momento propício para um ajuste de contas definitivo com o 25 de Abril, com as suas realizações, com as promessas ainda não cumpridas.

A agenda governativa é cada vez transparente : reduzir o Estado ao mínimo, às funções de soberania, eliminando pura e simplesmente o seu papel interventivo e socialmente democratizador, eliminar, em suma, o Estado social, que é um dos pilares do nosso Estado de direito democrático. A “reforma do Estado” que o governo pretende implementar é afinal uma mudança de regime. Obstáculo incontornável é, porém, a Constituição, que, apesar de revista e talvez piorada, continua a ser o suporte jurídico e institucional da nossa democracia, o obstáculo decisivo à execução do programa neoliberal que norteia a ação do governo.

Insiste o governo numa leitura de “emergência” da Constituição, pretendendo que a crise financeira do Estado justificaria uma interpretação dos princípios constitucionais muito “flexível” e “realista”. Mas o Tribunal Constitucional [1], numa manifestação notável de responsabilidade e independência, e mau grado alguma contemporização e parcimónia, recusou a “colaboração” com o programa do executivo, que muitos esperavam, e que, a ter sucedido, teria redundado na anulação do Tribunal Constitucional enquanto tribunal que é, e órgão central do Estado de direito democrático.

Manifestamente agastado com essa posição, o governo e a sua maioria, que não esperavam que a Constituição fosse levada a sério pelo Tribunal Constitucional, insistem em desafiá-lo, renovando propostas à partida constitucionalmente suspeitas, no mínimo, se não mesmo consabidamente inconstitucionais, assim pretendendo, por um lado, alijar responsabilidades pelo fracasso da sua política, por outro lado, crispar a querela constitucional, elevando a Constituição a obstáculo à solução da crise e ao desenvolvimento social.

Esta crispação leva alguns setores mais radicais a pedirem já, ou a breve prazo, outra Constituição, sem explicarem muito bem como se processaria essa mudança. De qualquer forma, a incompatibilidade entre, por um lado, a Constituição, e, por outro, a política governamental e os projetos das instituições internacionais que nos tutelam, torna-se a cada dia mais evidente. Por isso, a Constituição está hoje no centro da luta política em Portugal.


Uma “modernidade” muito arcaica

Dos três grandes princípios estruturantes da nossa Constituição (princípio maioritário, princípio do Estado de direito, princípio do Estado social) é evidentemente o princípio do Estado social o que está especialmente sob a mira da maioria parlamentar e do seu governo. É que é este princípio que “mexe” na estrutura social, operando uma certa redistribuição da riqueza, corrigindo desigualdades, atacando de alguma forma o poder das classes economicamente dominantes. Nos termos do art. 9º, d), da Constituição, é tarefa fundamental do Estado a promoção do bem-estar e qualidade de vida do povo e da igualdade real entre os portugueses, e a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais. Estes constituem um extenso catálogo : direito ao trabalho, direitos dos trabalhadores e consumidores, direito à segurança social, à proteção da saúde, à habitação, ao ambiente sadio, à proteção da família, da paternidade e da maternidade, da infância e da juventude e da terceira idade, à educação.

Pois bem, é todo este complexo de direitos e garantias, este programa de democracia social ínsito na Constituição, que a atual maioria quer varrer, com o pretexto de que é irrealizável, que é insustentável financeiramente. Haveria um desajustamento claro do programa de direitos sociais em relação à realidade e à modernidade.

Há que reconhecer que a “modernidade”, ou seja, a presente conjuntura internacional, é pautada efetivamente pelo triunfo, a nível global, e nomeadamente europeu, do neoliberalismo, que constitui afinal uma ideologia radical de distribuição da riqueza, a favor das classes economicamente dominantes. É essa precisamente a ideologia do governo, que quer pôr em prática esse programa, aproveitando o circunstancialismo presente : a tutela sobre o nosso país das instâncias europeias e do FMI, os grandes arautos dessa ideologia. Mas é essa “modernidade” que suscita por todo o mundo progressivamente a resistência das forças populares.

Na realidade, não se trata de “modernidade” nenhuma. Trata-se, sim, de um programa político e ideológico que visa operar uma brutal redistribuição da riqueza a nível interno e a nível global, empobrecendo progressivamente as classes populares e os países economicamente dependentes. Na sua fase atual, o capitalismo assume abertamente uma agressividade, anteriormente mitigada ou disfarçada, contra os trabalhadores e os pobres, retirando-lhes direitos e garantias, excluindo-os progressivamente da própria cidadania, empurrando-os para o desemprego, a exclusão social, a miséria.

Este programa não é moderno, é arcaico. O capitalismo voltou, com uma agressividade acrescida, à sua primitiva fase selvagem, da exploração dos trabalhadores sem limitações nem entraves. Pretende confessadamente eliminar os direitos sociais e as garantias dos trabalhadores que levaram uma centena de anos a conquistar e consolidar. O próprio direito do trabalho, como ramo autónomo do direito, é contestado, em nome da liberdade contratual e das regras do mercado livre, erguido a bezerro sagrado do mundo contemporâneo.

Quanto à “insustentabilidade” do Estado social, é uma mera falácia. É sabido que os direitos económicos e sociais são “mandados de otimização”, ou seja, injunções dirigidas ao legislador e ao executivo para que os realize tanto quanto possível. Tal não significa que eles não sejam obrigatórios. Pelo contrário, eles constituem normas jurídicas vinculativas para o legislador, que deve legislar no sentido de os viabilizar até onde for possível, e para os governantes, que devem executar o programa legislativo.

Dito claramente : as eventuais dificuldades de sustentação do Estado social não podem ser resolvidas com o seu abandono ou eliminação. Mas antes com a sua execução na medida do possível, o que impõe a orientação da política global no sentido da sua viabilização, e a proteção de um núcleo fundamental irredutível, já que o cumprimento do Estado social constitui a realização da democracia económica, social e cultural, objetivo supremo da comunidade constitucional portuguesa (art. 2º da Constituição). Ora, sob a desculpa de “insustentabilidade” do Estado social, o que efetivamente se prossegue e pretende é o abandono desse objetivo central, em execução de um programa político e ideológico contrário à ideia de igualdade ou mesmo de solidariedade social. A alegada “insustentabilidade” é afinal uma opção política, não uma fatalidade financeira !


Uma função fundamental e preciosa

Um aspeto essencial é o do valor da Constituição em tempos de crise. A maioria quer fazer passar a mensagem de que a crise financeira suspende automaticamente, por falta de suporte financeiro, todos os direitos e garantias do Estado social, e não só : também toda a panóplia de direitos e princípios, como os da igualdade, da proporcionalidade, da confiança, etc., sempre que impliquem encargos financeiros considerados “insuportáveis”. A ideia afinal é esta : em tempos de crise, a Constituição fica “suspensa” ou, pelo menos, tem de se submeter às exigências e às circunstâncias do tempo presente, prescindindo da sua rigidez para se flexibilizar conforme as “necessidades” impostas pela crise.

Esta tese “realista” encerra e mascara, porém, a intenção de negar à Constituição a sua autoridade de lei fundamental, para a converter numa lei como as outras, adaptável ou moldável às exigências/conveniências das maiorias. Ora, a Constituição tem na realidade uma vocação e uma função que, não a tornando imune à temporalidade, a investem de uma perenidade, enquanto repositório do consenso fundamental da comunidade política, e de uma rigidez que não se compadecem com flutuações conjunturais, que não se submetem às contingências das crises, políticas, financeiras ou de outra ordem.

Expliquemos melhor. A rigidez não é evidentemente absoluta. A Constituição pode ser revista, adaptada aos novos tempos e necessidades. O projeto constitucional pode ser sucessivamente renovado e atualizado, segundo a vontade expressa da comunidade politicamente organizada. Mas essa expressão da vontade está sujeita a parâmetros processuais e a limites materiais, instituídos com a promulgação da própria Constituição e nela inscritos, que mais não visam do que munir a comunidade política de instrumentos institucionais de defesa do projeto constitucional, para subtrair precisamente esse projeto às maiorias políticas conjunturais.

A Constituição serve, pois, um objetivo de garantia e estabilidade, de garantia e estabilidade do consenso social, das expetativas nela inscritas, dos direitos fundamentais, da legitimidade do poder político, de garantia e estabilidade da própria comunidade política organizada. Esta função é fundamental e preciosa não só em tempos de normalidade, mas especialmente em tempos de crise, quer política, quer social, quer económico-financeira. A estabilidade do funcionamento das instituições segundo as regras constitucionais e a garantia da proteção dos direitos fundamentais são condição de sedimentação da confiança e de participação popular no funcionamento do sistema político-constitucional, o que por sua vez é indispensável para evitar a emergência quer de tendências autoritárias por parte do poder instituído, quer de movimentos de protesto anti-sistémicos.

Daí que toda e qualquer tentativa de legitimação de um certo “estado de exceção”, ainda que na forma velada ou subliminar de “exigências das circunstâncias”, de imposições da crise, relevando todas da mesma lógica de “suspensão” da Constituição, são de denunciar. Na mesma lógica se inscreve aliás a proposta de “flexibilidade na interpretação” da Constituição, que deriva somente da constatação da inviabilidade no momento presente de uma revisão constitucional que favoreça os propósitos da maioria.

Aliás, o enaltecimento do estado de exceção (declarado ou tácito) como solução das crises sempre representou historicamente um enfraquecimento das liberdades e dos direitos fundamentais e a abertura das portas a políticas e soluções não democráticas. Não significa isto que as circunstâncias não devam ser atendidas, na decisão dos conflitos, das políticas, que a Constituição imponha decisões de tal forma rígidas que não haja possibilidade de adaptação das políticas às circunstâncias e conjunturas específicas. Significa apenas que as políticas têm de procurar respeitar a Constituição, de promover as suas prescrições, nunca de as violar, nem de adotar um programa de rebeldia e subversão do programa constitucional.


Uma tarefa imediata e central

A defesa da Constituição constitui no momento presente no nosso País uma tarefa imediata e central. A subalternização da Constituição, o desrespeito pelo seu papel fundador poderá abrir de facto o caminho a um novo regime político, não necessariamente de rutura aberta com a democracia política, mas certamente de enfraquecimento ou mesmo eliminação do Estado social, com uma profunda alteração do consenso fundamental vigente e a instauração de um novo contrato social substancialmente reduzido para as classes trabalhadoras e a maioria da população. É esse o objetivo abertamente confessado pelos grandes banqueiros, pelos porta-vozes informais ou oficiosos da maioria, pelos comentadores ao seu serviço permanente nos órgãos de comunicação social.

A defesa da Constituição, da nossa Constituição, apresenta-se pois como tarefa política vital na conjuntura presente. Foi neste enquadramento que adquiriu excecional relevância a ação do Tribunal Constitucional. Na arquitetura constitucional, cabe-lhe a função de fiscalização da constitucionalidade das leis, afinal uma função de “defesa da Constituição”, constituindo um órgão fundamental de garantia de equilíbrio entre os poderes do Estado e de contenção do poder das maiorias parlamentares conjunturais.

Quando o executivo governa abertamente contra a Constituição é inevitável o confronto aberto com o Tribunal Constitucional. Conflito que não é evidentemente desencadeado pelo Tribunal, mas sim pelas arriscadas (do ponto de vista constitucional) tentativas de contornar e iludir as garantias que o Estado social envolve.

Deve registar-se que o Tribunal Constitucional tem conseguido, no fundamental, agir como “defensor da Constituição”, o que tem concitado as iras do governo e de toda a direita política, e inclusivamente dos nossos credores, que não se cansam de pregar a necessidade de “flexibilizar” a interpretação do texto constitucional. Sendo embora legítimo o direito de crítica das decisões do Tribunal Constitucional (e sendo até efetivamente criticáveis, por ficarem aquém do que uma visão mais rigorosa das garantias constitucionais imporia), o que verdadeiramente é visado pelos críticos da área governamental e das instituições internacionais é a “ousadia” do Tribunal Constitucional de fazer valer a Constituição em matérias tão delicadas como o orçamento de Estado, fazendo perigar a estratégia delineada pelo governo, por ele “combinada” com essas instituições, como se a Constituição portuguesa não existisse ou tivesse que moldar-se aos imperativos dessa estratégia.

Do que se trata realmente não é de críticas, que necessariamente teriam de revestir argumentos de ordem jurídico-constitucional, mas de malévolas insinuações de um pretenso ativismo político por parte dos juízes do Tribunal Constitucional, e também de formas de pressão/chantagem intoleráveis sobre eles, responsabilizando-os antecipadamente de consequências apocalípticas, agitando o fantasma da derrocada financeira do Estado se não for seguido estritamente o guião do governo para a saída da crise, para o qual não haveria alternativa…

Espera-se que o Tribunal Constitucional, tal como sucedeu anteriormente, no fundamental repita-se, não sucumba às imprecações/ameaças do executivo e de toda a direita em coro. Se o fizesse, poderia salvar o orçamento, e ganhar a simpatia dos credores, mas mergulharia o Estado de direito português numa crise de difícil recuperação. O que nos tem valido, afinal, é que as instituições democráticas têm resistido e funcionado basicamente, sem lesões significativas. É porque temos esta Constituição, porque nos vemos e revemos nela, que ainda podemos olhar de frente os nossos credores.

A Constituição é um projeto vivo e inacabado. A sua defesa é uma tarefa essencial. E não cabe apenas ao Tribunal Constitucional, compete a todos nós. Vale a pena lembrar o artigo que rematava a Constituição francesa de 1795 : “O povo francês confia a presente Constituição à fidelidade do corpo legislativo, do diretório executivo, dos administradores e dos juízes ; à vigilância dos pais de família, das esposas e das mães, à afeição dos jovens cidadãos, à coragem de todos os franceses.”


[1] Ver a este propósito Maia Costa E., « Um órgão da democracia », in Notas de Circunstância, n° 2, outubro de 2013.


O subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.