Eduardo Maia Costa
No Fundão da minha infância, nesses remotos anos 50, pelo Natal os meninos escreviam ao Menino Jesus a pedir prendas. Bem, nem todos os meninos, é certo…
Os miúdos dos bairros pobres e os das quintas não tinham, por natureza, acesso ao Menino. Mas eu e os meus amigos mais próximos tínhamos. Chegava o princípio de dezembro e eu começava a escrever a minha carta. Era com uma emoção difícil de conter que a escrevia. Eu tinha consciência da responsabilidade do pedido, como sobretudo da gravidade do próprio ato em si : escrever diretamente, sem intermediários, ao Menino que era filho de deus, que era de certo modo também deus…
Enchia-me de coragem e começava. Aconselhava-me com a minha Mãe e lá escrevia. Pedia as prendas por que ansiava e tentava fundamentar o meu pedido. Já não me lembro do meu estilo nem da minha argumentação, não fiquei com cópias e os originais estão inacessíveis, lá nos arquivos celestes (espero que devidamente catalogados). Terminada a carta, metia-a num envelope e escrevia o endereço : Menino Jesus, Céu. Depois, entregava a carta à minha Mãe, que se encarregava de a remeter ao destinatário, escondendo-me sempre quem seria o mensageiro. E passava o resto de dezembro à espera, uma espera quase insuportável.
Chegava a Noite de Natal. Eu morava no Adro. Íamos à Missa do Galo e, mal ela acabava, eu corria desenfreado para casa, direito à cozinha. Lá estavam as prendas embrulhadas em cima do fogão, e a carta de resposta do Menino Jesus. Numa rápida vista de olhos pelos (poucos) embrulhos, logo suspeitava que ainda não era desta que iria receber o que pedira, suspeita confirmada ao abri-los, acumulando desilusões.
No fim, abria a carta (não tinha selo, mas eu não estranhava, para mim era evidente que o Menino Jesus estava isento de franquia). Eu estava desiludido, mas era um momento indescritível esse de abrir uma carta vinda do Céu, escrita pessoalmente pelo Menino Jesus ! Começava a ler. Ele chamava-me familiarmente “Eduardinho”. O Menino Jesus conhecia-me bem, via-se. Sabia tudo de mim, e de certa forma tinha-me debaixo de olho. Era severo comigo : eu não comia, era desobediente, arreliava a minha Mãe. Não, não merecia as prendas que tinha pedido. Teria de melhorar o meu comportamento e depois se veria… Tinha um ano para me emendar. No Natal seguinte o meu comportamento seria novamente analisado. Para já, que me satisfizesse com as prendas recebidas, que correspondiam ao que eu merecia. Fechava a carta. Eu achava que havia ali alguma injustiça, o meu comportamento não me parecia assim tão mau… Mas aceitava o veredicto (aliás, sem recurso). E guardava a carta, talvez a melhor prenda de Natal.
Aos dez anos fui para Lourenço Marques. Aí era o Pai Natal que distribuía as prendas e não aceitava correspondência. Escassos dois anos depois comecei a pôr em dúvida o Menino Jesus e o próprio pai do Menino. E, passado um ano, cortei definitivamente relações com toda a corte celestial. Ficaram-me as cartas do Menino Jesus, que eu conservo religiosamente como momentos mágicos irrepetíveis da minha infância perdida.