Fernando Paulouro Neves *
Muitos anos depois, os leitores que no silêncio dos arquivos, por acaso, deixam cair os olhos cansados sobre as crónicas dos acontecimentos de Junho de 2014, ainda suspendem a respiração e se interrogam como aquilo aconteceu.
Ficam com o olhar suspenso na dificuldade de imaginar a situação real, dado o cromatismo das narrativas e a vivacidade das descrições. Percebe-se, pelo fluir da história, que os cronista não conseguiram distanciar-se inteiramente da realidade e, em vez de relatos quimicamente puros, como dizem que devem ser os registos para a História, fizeram crónicas de jornal, com linguagem imediata, dando sobretudo expressão à fulanização dos atores políticos, em detrimento da dinâmica da política em movimento, bem visível e audível na Praça ; a rua, na verdade, voltava a ser a circunstância geradora do dinamismo histórico dos instantes. Nestas ocasiões, bem sabemos que a emoção não se despe da escrita, como quem despe um casaco, e que, no imediato da prosa, contam muito a explosão social percepcionada, a vibração dos protestos, a determinação colectiva da indignação popular, fenómenos sociológicos que vieram desmentir a mansidão servil e os brandos costumes, como o governo gostava de catalogar a populaça. Então, um dos papéis encontrados, muito amarrotado, abandonado numa das arcadas, muito perto do palco dos acontecimentos, contava assim a realidade daquele dia.
Andavam todos muito entusiasmados com a visita da Troika para o último exame. A ministra Albuquerque dava gritinhos de contentamento ("Eu é que negociei ! Eu é que negociei !"), mas quando foram informar o vice primeiro-ministro deste espetáculo em curso no Ministério das Finanças, Portas bateu o tacão, muito prussianamente, para exclamar :
— Para mim, é irrevogável que a Troika é da minha alçada. Eles estimam-me muito, desde que eu meti no bolso as minhas linhas vermelhas e mandei para o inferno dos cortes os pensionistas e os reformados. Aliás, que culpa temos nós que eles agora durem tanto... O Macedo, honra lhe seja, bem tem trabalhado para que a falta de cuidados médicos no SNS avie a cambada dos velhotes e dê mais trabalho às funerárias !
Portas ajeitou o nó da gravata e chamou Nuno Melo, que tinha passado pelo Ministério para lhe apresentar cumprimentos e receber instruções para a Europa :
— Oh, Nuno ! arranje-me aí um guiãozinho para a última visita da Troika, que eu não posso pedir nada a estes gajos do PSD, que são uns incompetentes e politicamente só metem água. Veja a múmia do Machete, as desgraças que tem feito ! Tenho-me farto de apagar fogos por causa das suas besteiras...
Melo deitou mãos à obra e fez uma programação catita, com um roteiro para situações oficiais, as reuniões para o exame final, e depois um outro, para a vadiagem turística, com geografia de grandes restaurantes, visitas a lugares interessantes de Lisboa, uma sessão de fados, claro, e, até, com uma interrogação grande, à margem, a sugestão de meninas para o serão, aquela espécie de fruta que Pinto da Costa, nos tempos gloriosos, gostava de oferecer aos árbitros.
O vice-primeiro olhou para o papel, deu-lhe uma palmadinha com a costa da mão, e exclamou :
— Não está nada mal, não senhor, tem aqui muita imaginação. Só aqui há uma coisa — e torceu o nariz. — Esta história das meninas… eu não gosto !
— Olhe que eles, frequentam ! — disse o outro, com um sorrisozinho assacanado. — Então aquele gajo do FMI, que tem um ar voraz, como é que raio ele se chama ?, Subir, não é ?, tem cá uma pinta — e dando uma gargalhada : deve ser da escola do Strauss-Kahn...
— Não se fie nas aparências dos tipos da Troika… — ripostou Portas, com um gesto largo, estilizado das suas encenações nas televisões. — Aquele alto e careca, que traz sempre a pasta agarradinha, debaixo do braço, com uns olhos frios por detrás duns óculos banais, até parece um guarda dum campo de concentração nazi, desfardado...
Riram os dois, a bom rir, mas à cautela riscou o programa das meninas,
No dia seguinte, o vice foi a correr ao primeiro, a S. Bento, e levava, no bolso, o guião.
Passos foi cordial, olhou para o programa, analisou, bateu-lhe amigavelmente no ombro, e, com um risinho cínico, perguntou :
— Oh, Paulo ! com tanta night, não faltam aqui umas meninas ?
O outro fez um sorriso amarelo, enquanto o primeiro-ministro já o despachava para a porta, com a lamentação sacramental :
— Meu caro, eu não tenho um minuto de descanso, é muita responsabilidade sobre os meus ombros, se eu me afundo, sabe, é o país que também vai ao fundo comigo. Meu Deus...veja o peso que isto representa...
Ainda Portas não tinha descido as escadas — a pensar em voz alta : “este palerma julga que está a falar para a História…” — e já o primeiro chamava o seu ajudante Moedas, grande especialista em vil metal, fazendo jus ao nome, e amante da Troika sobre todas as coisas.
O outro entrou esbaforido no Gabinete, e trazia no seu encalce a ministra Albuquerque, com quem estava num tete-a-tete financeiro, por acaso a falarem de moedas e da gravidez da dívida, que não parava de aumentar.
Passos exibiu o papel de Portas e não se conteve :
— Olhem só para a merda (desculpe, querida !) de guião, parece a reforma do Estado, caramba ! — exclamou o Primeiro. — A porcaria que ele me apresentou para a visita da Troika. Pode limpar o guião à parede...
A senhora ministra das Finanças corou um pouco, e tirou logo da mala mais um papel, que entregou ao primeiro-ministro, como quem tira (sem ofensa) um coelho da cartola :
— Está aqui o programinho todo para a visita da Troika. Todinho. Eu cá sou tu-cá-tu-lá com eles... São uns queridos !
O primeiro foi lendo, e, à medida que lia, abanava que sim com cabeça, num assentimento tácito às ideias da ministra, tudo tão bem feito, tão profissional, tão prestigiante. Mas ainda meteu uma piadinha :
— Não me diga que há aqui mãozinha do Gaspar ?
— Ora, o Gaspar ! — sorriu ela com aquele sorriso mínimo que, às vezes, escapa à cara de pau, que é sua imagem de marca. — Ele agora, coitado, não tem tempo para mandar cantar um cego, até vai fazer as contas da crise, ao Costa, no Banco de Portugal…
Passos afastou-se um pouco, a pensar, mas a decisão foi rápida.
— Está feito ! — respondeu. — Muito bem achada esta ideia do conselho de ministros reunir com eles no Ministério das Finanças... que é a casa-mãe das finanças, enquadrada pela monumentalidade do Terreiro do Paço, lugar simbólico do poder. Excelente, Luisinha, excelente !
Passos sugeriu que o lugar da reunião fosse mantido em segredo absoluto, por medida cautelar.
— Cautelar ? — arrebitou as orelhas, Moedas.
— Sim, por precaução... — respondeu Passos, um pouco enfadado. — Eu próprio pedirei aos ministros que fiquem com o biquinho calado.
Brilhavam os lustres do salão nobre, estava tudo um brinquinho. Maria Luís Albuquerque fizera um ajustamento perfeito na decoração do ambiente, que era de festa, sem o parecer. Estavam todos os membros do governo mais o secretário Moedas, espécie de factotum do triunvirato, e, quando a missão dos empregados da senhora Lagarde, do senhor Barroso e do senhor Drahgi chegou ao salão, houve tempo para tilintarem taças de cristal num Porto de honra, em que todos participaram erguendo os copos:
— À Troika, à Troika ! à Troika !
Encaminharam-se para a enorme mesa, que tinha águas, bolachinhas e bonbons, quando surgiu o primeiro equívoco da reunião do Conselho de Ministros alargado. Os membros da Missão estrangeira ficaram ostensivamente de pé, à cabeceira da mesa, até que Passos Coelho, um pouco envergonhado :
— Façam favor de se sentar e presidir, eu cedo o meu lugar...
E Moedas, muito solícito :
— Eu dou assessoria, sou um humilde criado de Vossas Excelências !
Ainda os salamaleques não tinham acabado, e já o tipo do FMI, bruto que nem casas, sacava do bloco para a primeira recriminação :
— Então não desceram os salários da privada ? E na Função Pública os despedimentos vão a passo de caracol...
— Mas... — tentou balbuciar Passos Coelho.
— E essa ideia peregrina de aumentar o salário mínimo... — era, agora, o representante da Comissão. — Julgam que estão na Alemanha...
— Mas... — era, de novo, Passos, mansamente.
O senhor Subir, do FMI, voltava à carga :
— E as pensões e reformas, quando é que acabam, definitivamente, com essa excentricidade ?
— Mas... — voltou a intervir o primeiro-ministro.
Ouviu-se, então, um enorme barulho, um clamor que vinha da Praça. O Terreiro do Paço transbordava de indignação, centenas de cartazes levantavam-se ao alto, como nos saudosos tempos do prec. Ouvia-se, distintamente, o coro das palavras de ordem — "RUA", "TRAIDORES", "GATUNOS", "QUE SE LIXEM OS MERCADOS" — e, quando Portas desviou subtilmente o reposteiro, para descobrir o que se passava lá fora, ficou com um ar apavorado, como fazia no tempo do "Independente", ao ouvir pronunciar a palavra Cavaco.
— Aquilo é a revolução ! Estão lá todos…
À frente via-se, distintamente, um enorme cartaz, empunhado por dois polícias, que dizia : “TROIKA GO HOME !”
Às vezes, ouvia-se a “Grândola” ou as heróicas, de Lopes Graça, “vozes ao alto, vozes ao alto !”, mas logo se agigantavam as imprecações colectivas, palavras de raiva e de indignação, que pareciam sacudir a cidade inteira.
Eles estavam sem pinga de sangue.
Levantaram-se da mesa, ao mesmo tempo, como se uma mola invisível os tivesse impulsionado, e começou então a ouvir-se a Praça toda a gritar :
— Defenestração ! Defenestração ! Defenestração !
E Passos, que só tem bom ouvido para a música :
— Lá estão os tipos com a cantilena dos comunas a pedir a demissão !
Foi quando o vice o interrompeu :
— Eles não estão a pedir a demissão, estão a exigir a defenestração, que é bem pior !
Ouviu-se, num português medíocre, o homem do FMI perguntar :
— Que coiso é isso de-fé-nes-tra-ção ?
— É lançarem-nos pela janela ! — esclareceu Maduro, adiantando a sua erudição.
— A culpa é do Portas, que andou por aí a badalar que íamos ter, agora, um 1640 fiscal... — ouviu-se alguém, em tom acusatório, das bandas do PSD. — Isso lembrou-lhes logo traidores e defenestrações...
Lá fora, era o tumulto.
— O que eles querem são as nossas cabeças — pensou em voz alta, o ministro Pires de Lima, que tinha fama de soldado e de ler a realidade com objectividade.
O ambiente era, agora, de inquietação e medo. Passos estava fora de si, e ouviu-se claramente a sua voz, com força barítonal :
— Se esta reunião era confidencial, como é que os gajos sabiam que estávamos cá todos...
Os olhos viraram-se logo para Portas e um engraçadinho — terá sido o Moedas ? — exclamou :
— Foi um segredo irrevogável...
Chegou, entretanto, o primeiro relatório da Secreta. Estão lá todos. Nas linhas da frente, Mário Soares, os polícias e as forças armadas, a cgtp, a ugt, os indignados do "que se lixe a Troika", magistrados, professores, médicos, sem-abrigo, os da Aula Magna, trabalhadores dos estaleiros de Viana e dos CTT, e, num sublinhado especial, a negro, o relatório indicava a presença na manif (olho neles !) de Rui Rio, Pacheco Pereira, Capucho, Freitas e até de Alberto João, mas este muito mais longe. E dava outra informação : Seguro não foi visto !
Os gritos pedindo "Defenestração" eram cada vez mais fortes. Passos, sugeriu que uma comissão fosse dialogar. Mas ninguém deu um passo em frente. Marques Guedes auto-excluiu-se dizendo que tinha mulher e filhos, e o ministro da Defesa avisou logo :
—Eu cá nem sou militar !
Os olhares fixaram-se em Paulo Portas, mas o vice fingiu-se distraído, acercando-se de uma das janelas. Duas pedradas estilhaçaram os vidros e um petardo estoirou na fachada, ameaçador.
Crato, subitamente regressado aos velhos tempos, começou a cantar "a canção é uma arma" e, depois, como um louco, gritou para os tipos da Troika, que se tinham colocado a um canto mais sombrio da sala, transidos de medo :
— De pé ! Vítimas da fome !
Portas é que estava fora de si.
— Oh, Aguiar-Branco, afinal onde estão os seus militares, e você, Macedo, que me diz dos seus polícias ? Com que então estava tudo muito controlado, estava tudo no papo...
Era, outra vez, Passos, a reclamar contra o regabofe pré-revolucionário. Em desespero de causa, e temendo invasão, telefonou para Belém, a pedir auxílio ao Presidente. Houve um suspense na sala, o silêncio adensou-se, até que a cabeça de Moedas saiu debaixo da mesa, para perguntar :
— Então ?
— Então, nada ! Disse-me que estava bem de saúde, a tratar dos netinhos, com a Maria...
Foi Portas, lembrado das manigâncias dos ministros da ditadura, no 25 de Abril, que encontrou uma escapatória :
— Eureka ! Utilizamos a táctica do ministro da Marinha do Marcelo, que saiu por um buraco, aberto nas traseiras do Ministério...
Foi o que fizeram. Todos, menos Crato, que se disfarçou de estivador, e de Mota Soares, que se vestiu de motard, e saíram pela porta da frente. Os outros, em bichinha pirilau, passaram por um buraco, na parede menos visível. Mas foi o diabo para disciplinar o grupo, todos queriam sair ao mesmo tempo. Iam, já, na dianteira, os elementos da Troika — e Moedas a guiá-los : "sou um criado de Vossas Excelências..." — quando alguém lembrou : primeiro as senhoras e as crianças. Avançaram Maria Luís, Teixeira da Cruz, a ministra Cristas e Moedas, que apanhou a boleia das crianças. Os tipos da Troika, quando se apanharam cá fora, volatizaram-se.
Passos foi, então, no encalce deles, depois de telefonar para a agência de informações dos EUA, que vigia tudo. No hotel, disseram-lhe que eles tinham ido, à pressa, para o aeroporto. Foi lá. Encontrou-os esbaforidos e descompostos, ainda um ar de pânico nos rostos, a caminho do check-in.
— Então e a avaliação ? — perguntou o primeiro-ministro.
— Passaram com distinção... Isto já não tem conserto. Deram cabo do país, como nós pedimos. A bandalheira é total. Parabéns !
Quando regressava a Massamá, pareceu-lhe ouvir ainda o clamor do levantamento popular. E uma palavra não lhe saía da cabeça : defenestração.
* Fernando Paulouro Neves fez toda a sua carreira profissional no Jornal do Fundão (fundado pelo seu tio António Paulouro), como redator, primeiro, chefe de redação, em seguida, e diretor, por fim, tendo abandonado estas funções em dezembro de 2012. É por outro lado autor de textos e obras de caráter literário, de ficção e de ensaio.