Reflexão Dar coerência ao sistema

J.-M. Nobre-Correia, professor emérito da Université Libre de Bruxelles (ULB)

O atual enquadramento legal das eleições autárquicas, da composição dos executivos municipais como das juntas de freguesia, encerra de facto a democracia representativa num espartilho demasiado dirigista, autoritário…


A legislação que regulamenta a constituição das juntas de freguesias e dos executivos municipais é inacreditavelmente absurda. E se há quem duvide que assim seja, veja os imbróglios nascidos das últimas eleições autárquicas. E as situações que têm impedido a constituição de alguns executivos e riscam paralisar o funcionamento de outros nos próximos tempos.

Na sua edição de 28 de novembro, dois meses depois das eleições, o Jornal do Fundão evocava cinco situações de “impasse autárquico” no distrito de Castelo Branco : “três na Covilhã, uma em Castelo Branco e outra em Penamacor”. E o jornal acrescentava : “A falta de entendimento entre as candidaturas eleitas está a impedir a constituição do órgão executivo (Junta) e deliberativo (Assembleia de Freguesia). Nalguns casos, as diferentes listas eleitas para a oposição uniram-se, formando-se assim maioria e isolando o presidente da Junta eleito”. Mas quantas outras mais situações de “impasse” não haverá por essa Beira e esse país fora !…

A absurdidade da legislação salta aos olhos. Os eleitores são chamados a escolher os seus representantes na assembleia municipal, mas também, num escrutínio distinto, os membros do executivo municipal. E, em matéria de juntas de freguesia, o cabeça da lista mais votada será obrigatoriamente presidente. Quer isto dizer que, na prática, há sérias probabilidades para que os executivos dos municípios ou das freguesias se encontrem em posição minoritária, “de mãos atadas”, perante assembleias dominadas pelas listas adversas.

Transpondo os princípios desta legislação para o plano nacional, era como se tivéssemos que eleger, em dois escrutínios diferentes, os membros da Assembleia da República no primeiro e a equipa governamental no segundo. Correndo o risco de se ter escolhido um governo permanentemente minoritário no parlamento e, desde logo, incapaz de assumir os destino do país.

Em termos de democracia representativa, uma junta de freguesia, um executivo municipal e um governo nacional têm que emanar da assembleia que dispõe do poder de controlar a sua ação. E, da mesma maneira que o líder do partido mais votado é convidado pelo presidente da República a constituir o governo, o governador civil (ou a entidade que o vier eventualmente a substituir), representante supremo do Estado no distrito, deverá propor ao líder da lista mais votada que constitua o seu executivo municipal ou de freguesia.

Este líder da lista mais votada disporia então de um tempo limitado a breves (três ?) semanas para conseguir este objetivo. Em caso de insucesso, o governador civil (ou quem o vier substituir) deveria encarregar o líder da segunda lista mais votada a tentar constituir um executivo maioritário de coligação. E procedendo em seguida de igual modo em caso de insucesso.

Esgotadas todas as hipóteses possíveis do leque político municipal ou local, o governador civil deveria poder propor ao Ministério da Administração Interna a convocação, no curto espaço de tempo previsto atualmente pela lei (três meses), de novas eleições municipais ou de freguesia. Porque só assim é que o espírito mesmo da democracia representativa poderá ser respeitado e preservado.

Quarenta anos depois do regresso da democracia, há que dar coerência ao sistema e reconhecer aos cidadãos a plenitude de um direito e também de um dever de maturidade que lhes imponha escolher os seus representantes nas diferentes estruturas da administração local. Sem que isto se traduza na aceitação forçada de um espartilho que condicione seriamente os direitos democráticos do cidadão lá onde ele vive precisamente o seu dia-a-dia e onde lhe é mais fácil decidir em conhecimento de causa [i]


[i] Ver a propósito do sistema eleitoral para as autárquicas

Nobre-Correia J.-M., « Democratizar o sistema », in Notas de Circunstância, n° 1, setembro de 2013,

Lourenço L., « Melhorar o sistema », in Notas de Circunstância, n° 3, novembro de 2013.