Domingos Vaz, professor na Universidade de Beira Interior (UBI)
O desenvolvimento do “Interior” supõe a saída de uma cultura de fatalismo e assistencialismo, assim como a conceção de uma nova geografia capaz de contrariar as dinâmicas regressivas…
O debate em torno do desenvolvimento do “Interior” (entendido este enquanto sinónimo de “a parte interna do país, em oposição à costa ou às fronteiras ou a toda a região, que num Estado, se situa fora da Capital”) leva-nos a questionar alguns discursos produzidos sobre a ideia de “Interior”, expressão esta tão utilizada como, por vezes, também imprecisa.
Se é um facto que a ideia de “Interior” evoluiu para hoje assumir um significado geográfico, económico e social, a diversidade de discursos que o invocam e a variedade de contextos em que o fazem dificultam qualquer tentativa de definição. Diz-nos Jorge Gaspar (1993) que a “designação Beira Interior começou a definir-se no final dos anos 70, mas o seu uso radicará no facto de as regiões de planeamento criadas em 1969 serem, nos casos do Centro e do Norte, divididas em Litoral e Interior. A designação Beira Interior foi oficialmente assumida pelo Ministério da Agricultura em 1977 quando criou as regiões de desconcentração (…) dividindo a Beira em Litoral e Interior”. Mas que realidade se esconde, hoje, por detrás da expressão “Interior” ?
A emergência de outra perspectiva
Parece legítimo afirmar que o «interior» e a «interioridade» associam basicamente três aspectos : uma situação (subdesenvolvimento), uma causa principal (isolamento e dificuldades de acesso às áreas mais dinâmicas, localizadas no litoral), uma consequência particularmente grave (a desertificação, considerada nas suas várias componentes). Não raro, envolvendo estes três aspectos, surge um discurso marcado por uma cultura de fatalismo e de apelo à intervenção assistencialista do Estado.
Será esta imagem do «Interior» adequada aos dias de hoje ? Os aspectos invocados e o modo como são articulados constituem um retrato rigoroso da situação actual ou serão, sobretudo, uma visão-memória ? É certo que os vários elementos sublinhados correspondem a aspectos a levar em conta por todos os que pretendem contribuir para a requalificação dos territórios ditos do “Interior”. É certo, também, que o círculo vicioso que foi enunciado continua a operar em alguns contextos. Importa, no entanto, referir que uma intervenção adequada nestas parcelas do território nacional implica um entendimento distinto destas matérias. Trata-se, no essencial, de construir um discurso sobre o “Interior” que, incorporando as perspectivas anteriores como aspectos essenciais para a compreensão do processo histórico que conduziu à realidade actual, saiba, ao mesmo tempo, abrir espaço para a emergência de uma outra perspectiva.
O “Interior” é diversificado do ponto de vista dos recursos naturais, da estrutura económica e da distribuição da população, e é-lhe reconhecido um conjunto de elementos estratégicos para o ordenamento do território nacional, designadamente :
- A dinamização dos centros urbanos localizados em áreas de baixa densidade em “perda”, enquanto oportunidade para manter social e economicamente activas as regiões menos desenvolvidas ;
- Uma rede urbana multipolar e estruturada em sistemas urbanos sub-regionais com potencial para sustentarem o desenvolvimento regional policêntrico ;
- A posição geográfica nas ligações com Espanha e com a Europa, permitindo apostas inovadoras no aproveitamento das oportunidades que podem ser abertas por uma nova geografia de fluxos.
O sistema urbano da Beira Interior deverá polarizar um conjunto de cidades que abrange a Raia Central e a Serra da Estrela, eventualmente extensível às cidades de Seia, Gouveia e Pinhel, podendo assumir-se como fundamental para o reequilíbrio do território do “Interior”. Esta é uma estruturação urbana prevista no Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território (PNPOT) no quadro do reforço do policentrismo nesta região. Numa perspectiva mais operativa (e analítica) a concepção de políticas urbanas deve incluir quatro dimensões de intervenção, em articulação :
- Uma dimensão intra-urbana (combate aos domínios problema e vulnerabilidades de cada cidade) ;
- Uma dimensão interurbana (consolidação de subsistemas policêntricos através do reforço de fluxos, relacionamentos e acções de concertação e cooperação) ;
- Uma dimensão urbano-regional (intensificação dos processos de integração das cidades e dos subsistemas urbanos nas respectivas áreas envolventes) ;
- E, por último, uma dimensão de internacionalização (promoção de melhores condições de internacionalização e visibilidade externa).
Desempenhar um papel de charneira
Nestes territórios de baixa densidade, a cooperação interurbana torna-se imprescindível para aumentar a “massa urbana” e construir redes urbanas capazes de contrariar as dinâmicas regressivas. Os “sistemas urbanos territoriais” devem ser assumidos como o elemento estratégico do desenvolvimento, enquanto forma de organizar a concentração, de promover economias de aglomeração, de consolidar factores (avançados) de competitividade e de dar coerência aos espaços de influência das cidades. Torna-se importante acompanhar as políticas centradas nas infra-estruturas e equipamentos com as políticas centradas no «conhecimento», na «cultura», na «qualificação» e na «organização», passando da fase de dispersão e especialização dos equipamentos para uma visão de ordenamento e funcionalidade.
Acresce ainda, que, neste tipo de territórios, as cidades não devem ser vistas sem se considerarem as respectivas conexões com os aglomerados rurais. Se atribuímos à cidade um papel central nas políticas e nas estratégias de desenvolvimento regional, as cidades não podem, no entanto, funcionar como “oásis” no deserto e têm de procurar nos espaços envolventes, que estruturam, o suporte da sua competitividade.
O conceito de “sistema urbano territorial” procura ter em conta as relações entre a cidade e os territórios envolventes e parece-nos particularmente adequado para a fundamentação de uma política de cidade que não se traduza no agravamento das desigualdades intra-regionais. Existe uma interpenetração entre espaços rurais e urbanos, não devendo perder-se de vista uma visão de equidade e de exigência de solidariedade no desenvolvimento. Mas essa complementaridade só será possível com estratégias viradas para as zonas rurais (em despovoamento), que devem ser articuladas com as acções em torno das cidades.
Tem sentido reconceptualizar os territórios interiores para inspirar as políticas de desenvolvimento, que para serem eficazes não devem considerar estes territórios como “espaços marginais a cargo do país”, mas sim como espaços de oportunidades. Estas oportunidades devem ser procuradas nos “recursos do território”, nos “recursos humanos” e nos “recursos do conhecimento”, e podem ser potenciadas pela revalorização, em novos pressupostos, da dimensão transfronteiriça.
As potencialidades do território da Beira Interior para desenvolver vantagens comparativas com o restante espaço nacional consistem, exactamente, em poder desempenhar um papel de charneira entre o litoral português e as regiões da Espanha fronteiriça de Castilla y Léon e Extremadura. Para isso é decisivo o desenvolvimento das cidades médias portuguesas do “Interior”, pois só elas podem garantir, mais do que qualquer outro tipo de espaço, as densidades de proximidade e de interconexão requeridas ao bom desempenho das organizações e dos processos de desenvolvimento.
A nova geografia emergente
O incremento da cooperação transfronteiriça deve alargar-se para além do sugerido pelas diversas iniciativas comunitárias, procurando estratégias de aprofundamento e exploração de oportunidades comuns. Após as iniciativas comunitárias para as áreas rurais e de fronteira, onde se promoveram diferentes parcerias patrocinadas no âmbito das sucessivas gerações do Leader (Ligações entre Acções de Desenvolvimento da Economia Rural) e do Interreg (Cooperação Transfronteiriça), tem justificação a reflexão prospectiva sobre a cooperação que ajude a compreender as razões que ditaram a génese e a evolução de certos projectos, e se identifiquem boas práticas com efeito de demonstração.
Esta tarefa justifica-se ainda para perceber o papel das políticas públicas que, apesar dos discursos e intenções de discriminação positiva, se mostraram incapazes em gerar dinâmicas suficientemente positivas para reverterem as tendências instaladas, deixando sem solução os problemas estruturais que estes territórios defrontam (Jacinto, 2006; Diéguez, 2005). O relativo sucesso material que se verificou com a adesão à União Europeia não deixa de ser limitado e frágil, pois as “assimetrias internas e a incerteza quanto ao futuro” obrigam a repensar a nova geografia emergente cujas dinâmicas mais recentes se desenvolvem ao lado de tendências pesadas e estruturantes. Haverá problemas que subsistem e há outros que surgem, assim como há novos recursos e novas soluções.
As profundas mudanças que atravessam o território do “Interior” reconfiguram os velhos problemas e colocam aos diferentes actores desafios que não se superam com soluções ensaiadas do passado. Hoje é colocada em evidência uma maior interdependência entre territórios, a todas as escalas espaciais, aconselhando a repensar conceitos e instrumentos de actuação e a alterar os nossos esquemas mentais de interpretação.
Partilhamos com Reis (1999) a ideia de que o desenvolvimento regional é um dos ramos do conhecimento em que a inovação reflexiva e prática se torna mais necessária. Essencialmente porque a realidade é evolutiva, não suportando conceitos, ideias e concepções rígidos, antes exigindo novos conceitos interpretativos sobre as dinâmicas e os problemas sociais, económicos e ambientais do “Interior”. Além de detectar algumas “boas práticas”, hoje é exigida uma maior aposta no conhecimento e nos recursos intangíveis para influenciar políticas e estratégias de desenvolvimento.
Um capital de diferenciação e afirmação
O caminho percorrido, e as dinâmicas emergentes, devem inspirar novos intercâmbios e trajectórias de cooperação territorial que melhor respondam a problemas reais, mais ajustadas à compreensão da economia e da sociedade dos diferentes contextos locais. A cooperação bilateral de base territorial deverá ser perspectivada e aprofundada em domínios fundamentais como a conservação da natureza e a biodiversidade, o sistema de povoamento, na sua dimensão de oferta de serviços públicos, o ensino e a investigação, em particular no que respeita ao estabelecimento de redes de cooperação científica e tecnológica, ou o ordenamento de grandes espaços turísticos sensíveis à obtenção de sinergias.
Territórios de fronteira mas, também, espaço de múltiplas e ancestrais encruzilhadas, entre o passado e o futuro, a “Raia Central” reúne recursos diversos ligados ao património natural, histórico, cultural, religioso, simbólico, referências identitárias que importa salvaguardar e promover porque constituem um capital de diferenciação e afirmação das sub-regiões do “Interior”. Também a este nível o testemunho de experiências realizadas tanto no espaço português como na Raia espanhola, permitirá perspectivar estratégias comuns em territórios contíguos, abrindo perspectivas de maior cooperação na promoção de iniciativas que se complementam.
Uma sociedade mais equitativa implica a igualdade de oportunidades e de acesso ao conhecimento e aos bens e serviços de interesse geral, nomeadamente por via do aumento da mobilidade, da promoção de cidades inclusivas, e a execução de políticas activas para o desenvolvimento das sub-regiões do “Interior” e dos espaços rurais. O lugar onde se vive não deverá ser um factor de penalização em domínios básicos da vida colectiva.
Referências
Diéguez, V., Iberismo e Cooperação. Passado e Futuro da Península Ibérica, Campo das Letras/CEI/Câmara Municipal da Guarda, 2005.
Ferrão, J., Reconstruir o Interior destruindo a Interioridade: para uma estratégia activa de inclusão de actores, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Universidade Atlântica, Lisboa, (s/d).
Gaspar, J., As Regiões Portuguesas, MAPT-SEALOT, Lisboa, 1993.
Jacinto, R.; Bento, V., O Interior Raiano do Centro de Portugal – outras fronteiras, novos intercâmbios, Campos das Letras/CEI, Guarda, 2006.
Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional. Secretaria de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades: Programa Nacional da Política de Ordenamento do Território, 2006 (relatório).
Reis, J., “Introdução”, in Baptista, A., Políticas para o Desenvolvimento do Interior, um contributo para o Plano Nacional de Desenvolvimento Económico e Social, Coimbra, CCRC, 1999.
Vaz, D., “Que rumo para as cidades do Interior?”, in VAZ, D. (org.), Cidade e Território: Identidades, Urbanismos e Dinâmicas Transfronteiriças, Celta Editora, Lisboa, 2008, pp. 1-32.
O título, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.