Elisa Calado Pinheiro, professora aposentada da Universidade de Beira Interior (UBI)
Quando se jogam os novos caminhos do ordenamento administrativo do território, urge valorizar as dimensões geográfica e histórica que fizeram da Beira Interior uma paisagem cultural com passado, presente e futuro…
Numa área de transição entre o Norte e o Sul interiores de Portugal, o espaço administrativamente integrado nos extintos distritos da Guarda e de Castelo Branco (definido pelo conjunto das quatro NUTS III [1] da região Centro de Portugal : a Serra da Estrela [2], a Beira Interior Norte [3], a Cova da Beira [4] e a Beira Interior Sul [5]) caracteriza-se por um complexo e multifacetado mosaico de paisagens. Estas, moldadas pelos acidentes físicos e pela natureza, foram acentuadas pela ação humana, que lhe sedimentaram uma unidade cultural que resistiu até aos tempos de hoje.
Radicada nas atividades agro-pastoris, estas evoluíram quer para a especialização têxtil de alguns dos mais significativos centros urbanos da região, todos eles localizados na corda serrana, quer para a especialização agrícola em espaços demarcados por acentuados condicionalismos naturais, como é o caso da Cova da Beira ou das campinas de Idanha.
Território e identidade regional
Quando, como na atualidade, se sofrem os resultados da desindustrialização do país e se assiste a uma passiva aceitação de um novo modelo de desenvolvimento para a Beira Interior centrado, quase em exclusividade, na atividade agrícola e amputado da sua matriz industrial, percebemos que a região, para poder afirmar-se, terá que reconciliar-se com a sua longa história.
Se persistir na fragmentação administrativa do território, concretizado na demarcação das atuais comunidades intermunicipais, para além de não preservar as suas raízes geográficas e culturais, verá ainda passar-lhe ao lado a expectativas dos próximas financiamentos, a vigorar até 2020, no âmbito do novo quadro comunitário.
Urge substituir o modelo de desenvolvimento que nos estão a reservar, assente numa exclusiva especialização rural, por um outro que procure conciliar as complementaridades criadas ao longo do tempo, visando o desenvolvimento simultaneamente industrial e agrícola da região, mais consentâneo com a identidade física e cultural da Beira Interior, que nunca é demais reavivar.
Localizada no quadrante nordeste de Portugal, a Beira Interior compreende uma área com 12 193 km2, abarcando assim 13,7 % do território continental nacional. Tendo como principal referência a serra da Estrela, o termo Beira aplica-se a toda a área na envolvência desta, sendo demarcada pelas bacias do Douro e do Tejo e pela fronteira luso-espanhola.
Esta região, rica de contrastes, foi-se estruturando numa unidade cultural que entronca nas comunidades de pastores e agricultores que, desde a mais remota antiguidade, souberam tirar partido de um território com tão diversificados recursos físicos. Abarca os 14 concelhos que integraram o extinto distrito da Guarda e os 11 que aglutinava o de Castelo Branco.
A identidade cultural da Beira Interior radica num tempo longo, milenar. De acordo com António dos Santos Pereira, o termo, perfazendo embora “uma dessas criações antigas, cujo arcano nos remete à Lusitânia”, apesar de ainda “sem consagração constitucional”, tem sido “adoptada por instituições de ensino superior público e privado, empresas e empreendimentos, grupos de trabalho e de investigação de diferentes saberes, seminários, jornadas, colóquios e congressos, que registam a designação pouco importados com aquela” [6].
Terá sido, provavelmente, por referência a uma realidade geográfica tão imponente como a Serra da Estrela que os territórios na sua orla, à medida que construíam uma história comum, passaram a aglutinar como identitário o termo “beira”. Para além do significado de bordo ou margem que a língua comum lhe emprestou, a designação aparece já provavelmente reportada a uma localização territorial, num documento de 1181 (Petrus beira). Foi, provavelmente, em 1211, num documento de D. Sancho I que, pela primeira vez, o termo aparece já revestido de uma clara conotação geográfica (Gaudela de Beira). No inicio do séc. XV, no âmbito da divisão do território nacional em seis grandes unidades administrativas, aparece definida a comarca da Beira.
Uma configuração variável
Inicialmente circunscrita a toda a faixa interior entre o Douro e o Tejo, a partir do séc. XVI, passaria a estender-se para a faixa litoral, vindo a englobar antigos territórios, até então integrados na Estremadura. Será com esta configuração que a região irá permanecer “durante dois séculos e meio — limitada a norte pelo Douro e confinando a sul quase só com a Estremadura, que se alongava até aos confins de Mação e pelo vale do Zêzere penetrava até à Serra da Estrela” [7].
Em 1788, Frei Manuel de Figueiredo, cronista cisterciense, apresenta a seguinte descrição e delimitação da província da Beira : “O terreno plano que o mar bordeja entre Douro, e Mondego nas comarcas de Aveiro, Coimbra, Feira e Porto chama-se Beira-Mar ; às terras situadas entre o mesmo terreno, Douro, Zêzere, e serrania da Estrella tem o nome de Beira Alta, e as que discorrem desta Serra até os Domínios de Sua Magestade a Catholica, Douro e Tejo é propriamente a Beira Baixa (…)” [8].
Poderá concluir-se que, com o alargamento até ao mar, a região perdeu o carácter de homogeneidade que lhe conferia a sua posição interior, contribuindo para justificar a subdivisão a que se referia o cronista, em Beira Mar, Beira Alta e Beira Baixa. Todavia, só com a nova orgânica administrativa decorrente da vitória liberal, esta divisão viria a oficializar-se, apesar de só integrar a Beira Alta e a Beira Baixa. A legislação aprovada em 1835 introduz o distrito como a principal unidade administrativa, relegando a divisão provincial para segundo plano. A Beira Alta passou a ser constituída pelos distritos de Aveiro, Coimbra, Lamego e Guarda, enquanto que a Beira Baixa apenas pelo de Castelo Branco.
Em 1867, Martens Ferrão, no âmbito de uma nova reforma administrativa que, devido às contingências políticas, vigorou por um período demasiado curto, introduziu alterações á estrutura distrital até aí em vigor. São atribuídas as posições de capital de distrito a Coimbra (Beira Central), Viseu (Beira Alta) e Castelo Branco (Beira Baixa). Quanto a Aveiro passa a ficar integrado na província do Douro, subordinado diretamente ao Porto [9].
Esta mesma tendência para retirar à Beira a faixa litoral que se estende entre Gaia e Aveiro viria a verificar-se na primeira tentativa de reforma levada a efeito pelo regime republicano, em que o distrito de Aveiro viria a ser incluído numa nova província do Douro e Minho. Todavia, como muitas outras, esta reforma não vingou. Na verdade, a partir de 1836, a divisão administrativa do território estruturara-se com base na criação dos distritos enquanto órgãos de poder autárquico supra municipais, assim tendo permanecido praticamente até à atualidade [10]. Afirmaram-se como estruturas de apoio a uma clara orientação de centralização política que atravessou todo o séc. XIX, mantendo-se praticamente incólumes até 1936.
É que a Primeira República, apesar de defender uma nova divisão administrativa, não conseguiu implementá-la. O movimento republicano, que sempre defendera a divisão administrativa por províncias, em detrimento dos distritos, ainda antes de ter atingido o poder, encarregara em 1894 José Jacinto Nunes da elaboração de um projeto de Código Administrativo que preconizava aquela alteração. Apesar de, em Junho de 1914, ter sido aprovado pelo Senado um novo código administrativo que dividia o país em províncias, embora mantendo os distritos como órgãos intermédios, não conseguiu a concordância da Câmara de Deputados, tendo-se mantido a divisão tradicional [11].
As alterações da estrutura económica
Em 1936, o novo código administrativo irá reabilitar a província como unidade administrativa, entendida esta como uma “associação de concelhos com afinidades geográficas, económicas e sociais, dotada de órgãos próprios para o prosseguimento de interesses comuns” [12]. A Beira Transmontana foi integrada na Beira Alta, o Tejo voltou a constituir, junto à fronteira, o limite meridional da província da Beira, mas a norte, com a finalidade de preservar a bacia do Douro, manteve-se a divisão dos distritos.
O triângulo Coimbra-Viseu-Castelo Branco viria a sair reforçado, ao aliar a função de capital de distrito à de sede de província, em detrimento das restantes cidades. A província da Beira Baixa resultará da anexação, ao distrito de Castelo Branco, dos concelhos de Mação (Santarém) e Pampilhosa da Serra (Coimbra) ; a da Beira Litoral passará a agregar, ao distrito de Santarém, o concelho de Vila Nova de Ourém e a da Beira Alta os concelhos de Tábua e Oliveira do Hospital, relativamente ao centro do país [13].
A Beira, enquanto unidade administrativa, viria a constituir-se, como sublinha José Mattoso, como “uma província ou (...) um aglomerado de pequenas regiões em que o país ensaiou toda a espécie de trocas e de contactos ; onde, portanto, construiu a sua própria unidade feita das mais contrastantes diversidades. Não uma unidade ordenada, imposta a partir de um centro (…), mas uma unidade feita movimento, de influências culturais múltiplas, de circulação em vários sentidos" [14]. Após a revolução de Abril, logo em 1976, surge um projeto de administração regional, elaborado pelo Ministério da Administração Interna, que fundamenta a existência no país de cinco províncias, entre as quais se inclui a Província das Beiras, também designada de Região Centro.
Na segunda metade do séc. XX ocorreram profundas alterações na estrutura económica da região que, embora a nível sectorial, acompanharam a tendência nacional, manifestando-se, contudo, com diferentes intensidades, mas caminhando no sentido da terciarização.
Em 1981, o sector secundário constituía ainda o sector dominante no distrito de Castelo Branco, vindo a atingir o seu valor mais elevado em 1991. Esta situação era decorrente do tradicional peso histórico da indústria de lanifícios sediada na Covilhã que até 1991 manteve mais de metade da sua população afeta à indústria (54 %). Entre 1981 e 1991, o sector terciário registou um crescimento muito significativo, vindo pela primeira vez a surgir na Beira Interior como sector dominante.
No final do séc. XX, a Beira Interior era ainda perspetivada como uma região com um tecido económico débil e pouco coeso, socialmente deprimida, com um rendimento per capita abaixo dos 70 % da média nacional, com fracas acessibilidades e diminutas estruturas sociais e culturais, decorrentes de uma economia de mão de obra intensiva, assente no peso ainda relativamente exagerado da agricultura e de uma indústria pouco diversificada e tradicional.
Uma cultura que ainda respira
Acompanhando a Covilhã, as restantes localidades desta região serrana não conseguiram resistir á globalização e aos ventos que varreram esta indústria das regiões tradicionais europeias dos lanifícios, privilegiando-se uma nova implantação no Norte de África e em emergentes áreas asiáticas. Porém, a instalação do ensino superior na região potenciou a profunda reconversão da economia e da própria identidade das cidades que o acolheram.
Esta situação conduziu, a partir de então, ao acentuar da terciarização da economia. Todavia, a distribuição das atividades económicas encontrou profundas assimetrias, se compararmos o Eixo Centro-Interior, envolvendo as cidades da Guarda, Covilhã e Castelo Branco e a Periferia Raiana, abarcando os concelhos fronteiriços e alguns territórios do Pinhal Interior, que testemunham a persistência de processos de marginalização territorial, apresentando-se pouco dinâmicos e atrativos [15].
No setor secundário da Beira Interior destacam-se as sub-regiões da Serra da Estrela e da Cova da Beira, onde a concentração industrial atinge os valores mais elevados nos concelhos de Manteigas, com 48 %, de Seia e Belmonte, com 45 % e da Covilhã com 43 %. Trata-se dos concelhos históricos abrangidos pela permanência das indústrias tradicionais do têxtil e confeções que, a partir de então, assistiram ao acentuar dos bruscos processos de reconversão e sobretudo de desindustrialização, apesar de não ter sido afetado o aumento de produção, que correu a par de uma forte concentração empresarial.
O conhecimento direto de que beneficiamos hoje na análise do processo que conduziu à abrupta desindustrialização do país permite-nos admitir como atuais e aplicáveis algumas das proposta do conhecido Relatório Porter, produzido na sequencia da visita a Portugal de Michael E. Porter, em 1994, a convite do governo de então [16].
Estas estratégias constituem caminhos a poder ser percorridos na Beira Interior, numa área que constituindo um dos tradicionais setores da economia portuguesa, capitaliza o conhecimento histórico acumulado, com relevância na formação especializada dos recursos humanos ainda existentes e na vivência de toda uma cultura que ainda respira, sente e vive a atmosfera da lã…
Os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.
[1] A Nomenclatura das Unidades Territoriais para Fins Estatísticos (NUTS) foi aprovada na década de 70 do séc. XX, no âmbito da então Comunidade Económica Europeia, com a finalidade de uniformizar a produção e difusão de dados estatísticos entre o Eurostat, os serviços da Comunidade e os estados-membros, tendo sido adotada em Portugal, em 1986 (Resolução do Conselho de Ministros nº 34/86, de 26 de Março), tendo sido estabelecidos três níveis de NUTS. Esta legislação viria a ser reformulada em 1989 (Decreto-Lei nº 46/89, de 15 de Fevereiro), tendo a última versão, que visou a harmonização da legislação nacional com a comunitária, sido publicada em 2002 (Decreto-lei nº 244/2002, de 5 de novembro).
Conf.http://www.ine.pt/xportal/ine/portal/portlets/html/conteudos/listaContentPage.jsp?BOUI=6251013&xlang=PT [acedida em 10 de Janeiro de 2014].
[2] Abarca os concelhos de Fornos de Algodres, Gouveia e Seia (INE, 2001).
[3] Integra os concelhos de Almeida, Celorico da Beira, Figueira de Castelo Rodrigo, Guarda, Manteigas, Meda, Pinhel, Sabugal e Trancoso (INE, 2001).
[4] Engloba os concelhos de Belmonte, Covilhã e Fundão (INE, 2001).
[5] Integra os concelhos de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Penamacor e Vila Velha de Ródão (INE, 2001).
[6] PEREIRA, António dos Santos, Portugal adentro : do Douro ao Tejo. O milagre beirão, Covilhã, Universidade da Beira Interior, 2009, p. 15.
[7] CUNHA, José Correia da, Da região centro do país. Caracterização da rede urbana, Coimbra, Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Geográficos, 1967, p. 12 e, particularmente, os mapas das pp. 13, 14, 16, 17 e 18, que delimitam respetivamente o território da Beira em 1527 (mapa I), o período do séc. XVI ao séc. XVIII (mapa II), a divisão estabelecida pela lei de 25 de Abril de 1835 (mapa III), até à divisão regional preconizada por Amorim Girão (mapa IV).
[8] Citado por CUNHA, José Correia da, Da região centro do país, p. 12.
[9] CUNHA, José Correia da, Da região centro do país, p. 15.
[10] A extinção dos distritos só viria a ser aprovada por decreto-lei em 8 de Setembro de 2011.
[11] AMARO, António Rafael, “Os congressos regionais das Beiras e o regionalismo em Portugal (1921-1940)”, in Associação Portuguesa de História Económica e Social [org.], Portugal e as regiões : perspectivas históricas, Coimbra, Comissão de Coordenação da Região Centro, 1996, pp. 72-73.
[12] Conf. o art. 284 do Código Administrativo de 1936. Citado por CUNHA, José Correia da, Da região centro do país, p. 18.
[13] CUNHA, José Correia da, Da região centro do país, p. 18.
[14] MATTOSO, José, DAVEAU, Suzanne e BELLO, Duarte, Portugal o sabor da terra, Lisboa, Circulo de Leitores, 1997, p. 59.
[15] PAIS, Pedro, "Caracterização Humana", in PINHEIRO, Elisa Calado, Rota da Lã - Translana. Percursos e marcas de um território de fronteira : Beira Interior (Portugal) e Comarca Tajo-Salor-Almonte (Espanha), vol. 1, Covilhã, Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, 2008, p. 63.
[16] Sobre os fundamentos teóricos veja-se PORTER, Michael E., Estratégia competitiva. Técnicas para análise de indústrias e da concorrência, Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1991.