Análise A escola das incertezas

Isaura Reis, professora no Agrupamento de Escolas Gardunha e Xisto, Fundão

A partir dos anos 1980, as políticas educativas são marcadas por um grande descontentamento, abrindo caminho a medidas fortemente neoliberais e tornando o futuro problemático…

O abrandamento dos ritmos de crescimento da economia e da produtividade, as crises do petróleo de 1973 e de 1979, a onda inflacionária e o fim do padrão dólar-ouro geram uma crise estrutural das economias mundiais. O modelo geral de acumulação fordista, dominante até aí nos países industrializados, revela ter atingido os seus limites, tornando evidente o esgotamento do sistema técnico, o fim da produção em massa de produtos estandardizados e o agravamento das contradições sociais [1].

Com a mundialização da economia emerge um novo regime de acumulação pós-fordista, baseado na especialização e na flexibilidade, questiona-se a natureza e os papéis do Estado, incluem-se os fatores locais na consideração das dinâmicas económicas e assiste-se a processos de mudança ao nível cultural, designadamente no modo como as instituições e as sociedades são pensadas.

Os imperativos da economia

O Estado, na sua configuração tipicamente fordista, Estado Providência, é sujeito a um processo de reconfiguração, fortemente associado a pressões oriundas de esferas e instâncias transnacionais. O Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, a União Europeia e redes de peritos prescrevem soluções e boas-práticas que vão no sentido da desestatização, da privatização da economia e da descentralização, desconcentração e devolução de responsabilidades para as escalas regional e local.

Os impactos gerados pela intensificação dos fluxos mundiais, sobretudo de informação, parecerem também potenciar processos de mudança cultural. De facto, parecem conflituar verdades (razão, ciência e progresso) típicas da utopia moderna, anunciadora de uma sociedade mais justa e solidária, com a nova condição cultural marcada pela multiplicidade, fragmentação, desreferenciação e entropia.

Assumindo que a educação é uma variável dependente do processo de globalização, Roger Dale [2] chama a atenção para a forma como se expressam os mecanismos de efeito externo sobre as políticas educacionais. O uso frequente de termos como harmonização, disseminação, imposição, estandardização dão origem a um “senso comum” sobre o papel da escola na economia globalizada. Num contexto mundial de interdependência acrescida e face a estes mecanismos, bem como a toda a eficácia do “trabalho de inculcação simbólica” [3] acerca da inevitabilidade da globalização neoliberal, as políticas educacionais nacionais estão condicionadas em termos normativos, cognitivos e de regulação.

Para Stephen Ball [4] emerge uma nova ortodoxia educativa caracterizada por uma articulação entre o sistema educativo e o sistema económico, pela reorganização curricular, pela avaliação do sistema educativo, redução dos custos de funcionamento, descentralização e participação da comunidade, bem como pela lógica de mercado na gestão do sistema. Desta forma, os problemas vividos pela escola estariam marcados por uma crise de gestão, cuja salvação remeteria para a adoção de métodos legitimados por uma ideologia de “excelência” e de meritocracia, para “a adoção da ementa retirada do cardápio do universalismo gerencialista global” [5].

Com a introdução do mecanismo de mercado e a transferência de responsabilidades, o Estado pode continuar a manter o controlo do sistema educativo, porém, com uma nova forma de gestão de conflitos e um outro tipo de inter-relação com os restantes agentes, o que em última análise vem resolver ou atenuar os custos monetários e os custos políticos que até aí lhe estavam inerentes [6].

À medida que conceitos como economia do conhecimento ou sociedade da aprendizagem são apropriados pela educação, isto “simboliza a crescente colonização da política educacional pelos imperativos da economia” [7], bem como a elaboração de um novo mandato para os sistemas educativos, orientado no sentido da formação, através do reforço da capacidade qualificadora da escola.

O aluno enquanto consumidor

Correspondendo, de certa forma, à hipótese da nova realidade pós-fordista e à suposta emergência de uma nova configuração de pós-modernidade, com a valorização da temática da individualização, as reformas educativas, sobretudo nos países anglo-saxónicos, enfatizam a liberdade individual, a diversidade, a competição, a escolha e a descentralização, como meios de aumentar a eficiência e a qualidade dos sistemas educativos. Construídas à volta do aluno enquanto consumidor, do estímulo à competição entre estabelecimentos de ensino e da autonomia escolar, esta tentativa de estabelecer um mercado educativo orienta-se para os princípios da livre-escolha, concorrência, diversificação e avaliação.

Em Portugal, após a aprovação da lei de bases do Sistema Educativo em 1986 iniciou-se um processo de reforma educativa global, marcado por distintos ciclos. Num primeiro período (1987-1991), as políticas educativas foram marcadas por cinco vetores : 1. democratização do ensino ; 2. qualidade para a promoção da excelência ; 3. educação para o sucesso a favor da confiança, autonomia, competência, empreendedorismo e inovação ; 4. educação para a vida ativa ; 5. valorização da pátria, da língua e da cultura portuguesas. Num segundo período (1995-1999), a estratégia política seguida, designadamente com o Pacto Educativo Para o Futuro, apresentado por Eduardo Marçal Grilo, é de “geometria variável” : umas medidas correspondem a uma certa continuidade das reformas anteriores de Roberto Carneiro ; outras tendem a um certo compromisso entre gestão empresarial, qualidade e mercado educativo versus igualdade de oportunidades.

Este quadro reformista, marcado por um grande descontentamento com a educação, assume por vezes a forma de discurso catastrófico, particularmente significativo mais pela “crise de soluções” do que pela “crise de problemas” visto que arrasta consigo “o abrir caminho à aceitação pela opinião pública de propostas de cariz neoliberal, como sejam a privatização do ensino, a subordinação da educação à lógica do mercado, com a livre escolha da escola pelos pais, a competição inter-escolas, etc., misturadas com outras de cariz mais conservador, como o primado das aprendizagens fundamentais, o reforço da autoridade, do rigor e da disciplina” [8].

Com efeito, na educação dos portugueses parecem conflituar distintos princípios : igualdade de oportunidades de acesso e sucesso educativos e qualidade, eficácia e concorrência de mercado. Esta situação tem uma natureza híbrida que não anula uma certa tendência de convergência parcial das políticas educativas, sobretudo na Europa. De facto, os efeitos de contaminação gerados por mecanismos de efeito externo sobre as políticas nacionais, pressionam e legitimam o campo da decisão política e confrontam-se com uma dada especificidade nacional, obrigando a reinterpretações e mediações.

A empresarização da escola

São várias as circunstâncias históricas que fundamentam a especificidade portuguesa. Apenas após o 25 de abril de 1974, com a consagração constitucional da legalidade democrática e a institucionalização da sua organização e dos direitos políticos e sociais, ocorre em Portugal a consolidação do Estado-Providência. Só que, numa sociedade com características intermédias em termos de desenvolvimento e em rápida mutação, esta consolidação tem lugar num momento pouco propício. Num momento em que as economias europeias se confrontavam com problemas de emprego, inflação e estagnação, o Estado em Portugal, “à semelhança dos seus parentes mais maduros” teve “de refrear as expectativas, conter os gastos e procurar soluções de iniciativa privada para as necessidades sociais” [9].

Desta forma, as políticas económicas têm uma orientação neoliberal, designadamente ao nível do desmantelamento do sector empresarial do Estado e das privatizações, assim como da desregulação e da vulnerabilização dos direitos do trabalho. A tradução desta conjuntura, em matéria de educação, pode ser ilustrada com o uso frequente de termos como empresarização da escola e escolarização da empresa, desestatização do ensino , passar para as comunidades a responsabilidade da educação, diversificar a oferta de formação, o que vai no sentido claro da introdução do princípio de mercantilização das políticas educativas ; “o aumento da qualidade da educação terá de ser conseguido não à custa de maiores investimentos, mas precisamente através de políticas de racionalização e de reestruturação que garantam uma maior eficácia e uma maior eficiência interna” [10].

Em suma, a consolidação e a crise do Estado de bem-estar e da escola de massas, o processo de reforma do sistema educativo, com a elaboração da lei de bases do Sistema Educativo, associados à consolidação da integração europeia, bem como a influência de uma agenda globalmente estruturada para a educação são responsáveis por um conjunto de políticas educativas de orientação neoliberal.

Porém, após 2002 os efeitos do pensamento neoliberal nas políticas educativas passam a ser mais diretos e profundos. Com David Justino (2002-2004) e Maria de Lurdes Rodrigues (2005-2009) a palavra de ordem é a racionalização do sistema educativo, com particular referência para :
1. a transposição de lógicas, modelos, estratégias e paradigmas da gestão empresarial ;
2. a racionalização da rede escolar com recurso à retórica da descentralização e da autonomia, por via da extensão das políticas centralmente definidas para as periferias ;
3. a avaliação externa, baseada nos resultados, conferindo informação que contamina o discurso político de promoção da qualidade da escola ;
4. a criação de mecanismos de incentivo à escolha parental ;
5. o alargamento e diversificação da oferta escolar, baseada numa mera igualdade formal de acesso competitivo a modalidades e graus de ensino hierarquizados, social e escolarmente distintos e distintivos ;
6. o movimento de agregação das escolas, por via do reforço da sua dimensão ;
7. a redução dos poderes dos professores e dos seus sindicatos.

A mercantilização da educação

Em 2011, com a assinatura do Memorando de Entendimento sobre as Condicionalidades da Política Económica e a entrada em funções de Nuno Crato, como ministro da Educação, configura-se uma aliança politica entre neoliberais e neoconservadores. O caminho percorrido permite afirmar que as medidas tomadas correspondem a um consistente, forte e rápido movimento de mercantilização da educação e de liberdade de escolha para as famílias.

O cariz marcadamente neoconservador do atual ministro da educação pode ser confirmado pelos princípios e prioridades que estabeleceu para a sua ação política. Defesa e afirmação dos princípios do esforço, disciplina e autonomia e definição de prioridades das quais se destacam a criação de uma cultura de rigor e avaliação e a aposta na excelência e autonomia das escolas e liberdade de escolha aos pais.

Tal como Pedro Manuel Patacho [11] bem assinala, os cortes no setor da educação, o encerramento de escolas, a precarização do trabalho docente, o currículo único e obrigatório, as metas curriculares, os exames nacionais, as classificações (“rankings”) das escolas, a avaliação orientada para os resultados e a gestão racionalizadora e liderança unipessoal das escolas “formam parte de um todo forjado ao longo das últimas décadas e que este governo se propõe agora unificar”.

Passados quarentas anos sobre a revolução do 25 de Abril, a escola portuguesa parece ter passado da euforia e das promessas ao desencanto e às incertezas [12]. Apesar de os portugueses acederem cada vez mais precocemente à escola e prolongarem os seus estudos para além da escolaridade obrigatória, os problemas da escola pública estão longe de estar resolvidos.

Porém, a solução para os problemas em aberto não parecem resolúveis através de meros mecanismos de gestão, racionalização e mercantilização, mas antes através do equacionar dos valores, objetivos, políticas e recursos educativos. Isto é, a solução é de natureza política, pois antes de mais é necessário “pensar a Escola a partir de um projeto de sociedade, […] pensar não a partir dos meios disponíveis, mas das finalidades a atingir” [13].

Os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.

[1] Ver Isaura Reis, “A universalização da escola”, in Notas de Circunstância, n° 7, março de 2014.
Isaura Reis, “A escola de massas”, in Notas de Circunstância, n° 8, abril de 2014.
[2] Roger Dale, “Specifying globalization effects on national policy : a focus on the mechanisms”, in Journal of Education Policy, Londres, Routledge, janeiro 1999, v. 14, n. 1, pp. 1-17.
[3] Pierre Bourdieu, Contrafogos, Oeiras, Celta Editora, 1998, p. 37.
[4] Stephen Ball, “Cidadania global, consumo e política educacional”, in L. H. Silva (org.), A Escola cidadã no contexto da globalização, Petrópolis, Vozes, 1998.
[5] Carlos Vilar Estêvão, “Fragmentos de globalização na administração da educação e o lugar da escola nas políticas educativas globais”, in Cadernos de Ciências Sociais, Porto, Afrontamento, 2003, n. 23, pp. 83-100.
[6] Ana Maria Seixas, “Políticas educativas para o ensino superior : a globalização neoliberal e a emergência de novas formas de regulação estatal”, in Stephen R. Stoer, Luiza Cortezão e José Alberto Correia (orgs.), Transnacionalização da Educação : da crise da educação à “educação” da crise, Porto, Afrontamento, 2001.
[7] Stephen Ball, “Cidadania global, consumo e política educacional”, p. 126.
[8] João Barroso, “Organização e regulação dos ensinos básico e secundário, em Portugal: sentidos de uma evolução”, in Educação & Sociedade, Campinas, abril 2003, v. 24, n. 82, p. 74.
[9] Ramesh Mishra, O estado-providência na sociedade capitalista : estudo comparativo das políticas públicas na Europa, América do Norte e Austrália, Oeiras, Celta Editora, 1995, p. xi.
[10] Licínio Lima, “Modernização, racionalização e otimização. Perspetivas neo-taylorianas na organização e administração da educação”, in Cadernos de Ciências Sociais, Porto, Afrontamento, 1994, v. 14, pp. 126-127.
[11] Pedro Manuel Patacho, “Mercantilização da educação : Tendências internacionais e as políticas educativas em Portugal”, in Currículo sem Fronteiras, setembro-dezembro 2013, v. 13, n. 3, p. 577.
[12] Natália Alves e Rui Canário, “Escola e exclusão social: das promessas às incertezas”, in Análise Social, 2004, v. XXXVIII, n. 169, p. 981-1010.
[13] Rui Canário, “Escola: crise ou mutação”, in A. Prost et al. (orgs.), Espaços de educação tempos de formação, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 150.