Reflexão As identidades essenciais

M. Lopes Marcelo, antigo diretor regional do IFADAP *

A visão depreciativa do mundo rural depende muito da formação nas escolas. Há pois que levá-las a interagir com o território envolvente, para que os jovens se invistam em novas perspectivas de inovação…

As nossas terras, o território das nossas comunidades de origem, são as nossas pequenas pátrias ! A elas estamos ligados por fortes sentimentos indizíveis e por laços e afectos indeléveis.

Vivemos um tempo em que se valoriza o que é efémero, dito moderno, decorrente de um modelo individualista de consumo e de ruptura, numa acentuada voragem do presente tantas vezes vazio e desenraizado. De facto, o tempo actual é mais propício ao esquecimento e à fragmentação da memória, tornando descartável o simbólico e tendendo a desconsiderar a fruição reflexiva de ciclo longo, sedimentada na coerência da memória e na autenticidade dos valores. Sobretudo nas sociedades urbanas, verifica-se a falta da afectuosa aliança entre o passado e o presente, entre tradição e modernidade. Assistimos à rasoira das identidades locais face à acelerada massificação e uniformização cultural, à deriva produtivista, competitiva e consumista.

Do território à cidadania

Não se dá relevância às serenas maneiras de ser e de estar numa filosofia e noção de tempo longo, do fruir entendendo e partilhando as terras e as pessoas com os seus próprios alfabetos funcionais. A consideração e reflexão sobre os saberes, os saberes-fazer, os sabores, os produtos culturais e expressões genuínas da cultura popular são regra geral remetidas pela comunicação social para modesta página de curiosidades etnográficas, quando não são desvalorizados de forma cínica como “folclore”.

Anda quase toda a gente em fuga, em acelerada ânsia de ter, não sabendo bem do que fogem, nem para onde vão. Contudo, só na aliança fecunda entre o passado e o presente, se pode construir um futuro com alma, uma modernidade enraizada e coerente no respeito e vibração da identidade cultural. É pelo afecto e sentimento de pertença de cada pessoa à sua comunidade, que se percepciona e valoriza o património e, como base da cultura popular, o entendimento do território como suporte das relações culturais e produtivas que moldaram as populações.

Não há territórios pobres, nem condenados à desertificação produtiva e ao despovoamento. O que há são territórios com maior ou menor atraso em face da capacidade para definir prioridades, planear intervenções, assumir e concretizar com vontade política as estratégias, os projectos, os objectivos e a consequente avaliação. A capacidade para definir estratégias e prioridades a concretizar através de projectos coerentes com o território reside nas pessoas em função da sua mentalidade, informação e capacidade de organização.

A capacidade de organização, residindo nas pessoas, depende sobretudo da atitude e coerência das elites esclarecidas. Se por um lado é importante a rede das associações, colectividades, escolas, organizações sindicais e empresariais, partidos, governo e autarquias locais, o mais relevante é a visão integrada do conjunto dos seus dirigentes.

A emergência do território está cada vez mais na ordem do dia, quer para as populações das áreas rurais, quer mesmo para os habitantes das grandes cidades. Aí estão com crescente gravidade as notícias dramáticas dos incêndios, da seca, de cheias e derrocadas, de construções em sítios inadequados, de espécies animais e vegetais em desaparecimento. A degradação do território é contínua : leito de rios e de ribeiras que não são limpos, floresta que não é ordenada nem limpa, terrenos de cultivo abandonados que se enchem de mato (regressão florística), reservas e parques naturais geridos como “reservas de índios” – tudo a contribuir para expulsar as pessoas ! Esquecem-se os responsáveis e decisores políticos que quem organizou, produziu e humanizou o território foram os residentes ao longo de sucessivas gerações. Assim, o territórioé cada vez mais uma questão de cidadania, uma questão cultural e política de progressiva relevância.

A imagem do mundo rural

A escola é sempre mais do que o conjunto de recursos directamente implicados na acção de ensinar. A escola é também o meio social e cultural que a rodeia e, sobretudo, os valores e os laços da comunidade envolvente que lhe deu origem e que a escola serve. Isto, quando o poder central não interfere moldando o ensino a valores ideológicos e fins políticos de regime.
Tratando-se do meio rural, é o território (como mosaico dos recursos naturais, a sua história e os resultados da ocupação humana) que representa e devia alimentar o enquadramento da escola.
A imagem e a identidade cultural de um território não é um dado adquirido e estático, antes tem a ver com as mentalidades, a maneira de ser e de estar da população. E a escola tem muito a ver com a consciência social que se desenvolve, com a maior ou menor auto-estima das pessoas e com a sua capacidade para enfrentarem a vida.

No primeiro quartel do século XX, durante a Primeira República, a escola foi considerada como um agente activo e dinâmico, livre da tutela religiosa e factor de progresso no interior das localidades onde estavam inseridas. Contudo, nos anos trinta, com a ditadura do Estado Novo, tomou forma e impôs-se uma lógica minimalista, conservadora e elitista que enquadrou o ensino nas escolas. Com a redução da escolaridade obrigatória (1930), a criação de postos de ensino (1931), a orientação do ensino pela moral cristã (1935) e a simplificação de programas (1929-1937) criou-se um quadro, que o investigador António Nóvoa resumiu do seguinte modo :
“1.° Garantir e impor uma instrução mínima a todos, o que obriga a conceber o ensino primário de forma mais simples e dedicar-lhe uma atenção privilegiada.
2.° Escolher os mais capazes, separando-os logo que possível dos “incapazes” de ascenderem aos graus superiores de cultura, diversificando os mecanismos de selecção escolar.
3.° Orientar os estudantes no sentido das suas “naturais vocações”, isto é, no sentido dos seus destinos sociais.
4.° Fixar de antemão as necessidades do Estado e da Colectividade em matéria de diplomados, criando restrições à frequência de certos graus e de modalidades de ensino” [1].
Era o sentido da escola nacionalista, em que o professor primário teve um papel importante na construção do próprio Estado Novo. Segundo Áurea Adão, “ao ensino neutro proposto pelos republicanos no começo do século, sucede-se uma escola influenciada pela religião católica. Torna-se obrigatório a colocação de um crucifixo por de trás da cadeira do professor”. Era o regime moralista, conservador, autoritário e paternalista da pedagogia “Deus, Pátria e Família[2].

Se durante a Primeira República, a escola e o professor tinham o dever de instruir as crianças olhando para as realidades locais onde estavam integradas, com a mudança de regime a escola e o professor passam a ser elementos de cariz moralizante, muito relevantes para a defesa do regime no controlo das comunidades locais.

A mudança de paradigma

Ao longo do século passado, decorrendo da falta de infra-estruturas (vias de comunicação, água, energia eléctrica e saneamento básico) e de condições de vida muito duras, a imagem do mundo rural era a de atraso e de bloqueamento, de que se tinha de sair, de fugir “a sete pés”. E a escola era um instrumento para esse atraso. A escola reproduzia e ampliava a imagem depreciativa, pois as crianças eram ensinadas a detestarem a vida nas aldeias e a livrarem-se do pó do campo (hetero-estima). A estagnação produtiva nos campos não gerava empregos e a progressiva taxa de escolarização consolidou a fuga da imagem social negativa das profissões de lavrador, de pastor e de trabalhador rural. O êxodo rural para as cidades e o forte surto emigratório para a Europa, sangraram os campos da mão-de-obra activa.

Contudo, nas últimas décadas (pós 25 de Abril de 1974), a realidade do mundo rural mudou muito e para melhor. As acessibilidades, as redes de água, de energia eléctrica e de saneamento são uma conquista da democratização do país. As autarquias locais assumiram-se como agentes regeneradores e actores essenciais na dignificação das condições de vida. O modo de produção agrícola e florestal evoluiu e humanizaram-se as condições de trabalho. A estrutura da propriedade tem-se alterado, facilitando-se o acesso à terra com novas vertentes de exploração mais rentáveis. A imagem social, antes generalizada e entranhada, de que a população rural era por natureza rude e atrasada, inculta e bloqueada demora a ser ultrapassada. Contudo, alteradas que foram as condições de vida, está em curso um salto qualitativo de abertura e de reafirmação dos seus alfabetos funcionais próprios, ricos em valores e saberes. O olhar depreciativo sobre o mundo rural que ainda existe na sociedade, já não faz qualquer sentido. Ultrapassar-se tal paradigma injustamente enraizado é um longo processo, embora necessário e urgente.

À escola como agente do governo central, reproduzindo o entendimento autoritário que o regime tinha do país, sucedeu a escola renovada pelos ventos da democratização e da liberdade. No início desta fase, verificou-se disponibilidade para a escola se abrir às comunidades e ao património cultural envolvente. Contudo, tal disponibilidade foi diminuindo. Por força dos programas serem extensos e pesados e devido a um ambiente de competição, a escola quase não se abre aos saberes fora dos programas. Estes são de concepção central, muito na óptica citadina e urbana e pouco têm a ver com a realidade em que as escolas estão inseridas.

Contudo, é fundamental que as escolas do ensino obrigatório interajam com o território envolvente, abrindo-se a parcerias e a projectos comuns a outras entidades locais, de modo a que os jovens se comprometam num processo de cidadania activa e de abertura a novas perspectivas de inovação. A escola parceira de empresas, de autarquias e de associações de desenvolvimento local originará a partilha de massa crítica, de competências técnicas e de recursos, que abrirão novos horizontes formativos e novas capacidades de iniciativa. Jovens alunos mais intervenientes e enraizados, poderão gerar empreendedores que se fixem no seu território, capazes de assumirem de forma dinâmica a tradição e a cultura locais. Os seus projectos e iniciativas poderão ter um efeito de demonstração coerente com o território.

A herança do património rural

Um dos eixos com grandes potencialidades consiste em estudar e divulgar a herança do património rural, contrariando os riscos de destruição da memória, dos saberes e sabores rurais.

É importante divulgar o património cultural local (quer o edificado, quer o paisagístico), a maneira de ser e de estar que dá autenticidade e diferencia os territórios.

É urgente contribuir para o reconhecimento da cultura rural (incluindo a de tradição oral), promovendo a tomada de consciência pública das características, dos valores, das tradições e dos produtos genuínos que são a base da auto-estima das populações rurais. Importa assumir a memória viva dos saberes rurais, reconhecendo as pessoas na sua própria voz, pois são as pedras vivas da identidade das nossas comunidades : o que representa participar no processo afectivo de afiliação em que se vivificam as raízes. Acima de tudo, trata-se de partilhar, como prática pedagógica os conhecimentos e os valores enraizados no território onde a escola se insere e cujo futuro, só em conjunto, pode ser conjugado e construído.

São várias as vertentes em que a cultura popular, as características dos ciclos culturais produtivos (do linho, da pecuária, do pão, do azeite, do mel…), o artesanato produtivo e decorativo podem e devem entrar nas actividades escolares, de modo a acolher a memória colectiva das comunidades rurais. O contacto directo, experimentado, com a actividade dos artesãos e a vivência das tradições é de grande valor para o enraizamento da auto-estima. Trata-se da adesão pelos afectos, que opera e consolida a tomada de consciência e torna a herança cultural merecida.

Ultrapassar-se o estigma da visão depreciativa e redutora sobre o mundo rural, depende muito da formação que se operar nas escolas. A adesão aos laços e aos valores que envolve a vontade e a acção ao nível do ser, da auto-estima e da maneira de ser e de estar; não se obtêm de forma impositiva. Tais verbos não se conjugam no imperativo ! Pouco adianta tentar impor : participa, ama, acredita, assume !… Tal adesão resulta da lenta acção do exemplo, pelos laços familiares e representações sociais, bem como pela instrução escolar. Descurarem-se ou cortarem-se os laços e os valores, representa desenraizamento e deficiente estruturação das personalidades. E pessoas desenraizadas não são equilibradas nem disponíveis para o empenhamento na defesa de valores colectivos. Quando se perdem os laços e os valores, falha a família e a escola, ficando comprometida a auto-estima como fermento silencioso mas fecundo para a construção do futuro. Um futuro com alma e identidade, com projectos e oportunidades de se valorizar e fruir o que é genuíno e autêntico.

* IFADAP : Instituto Financeiro de Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas.

O titulo, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.

[1] António Nóvoa, “A ‘Educação Nacional’”, in Fernando Rosas (coord.), Nova História de Portugal – Portugal e o Estado Novo (1930 – 1960), vol. XII, Lisboa, Presença, 1992, p. 480.
[2] Áurea Adão, O Estatuto Sócio – Profissional do Professor Primário em Portugal (1901 – 1951), Oeiras, Instituto Gulbenkian de Ciência, 1984, p. 177.