Análise Terras de judeus e de cristãos-novos

Maria José Ferro Tavares, antiga reitora da Universidade Aberta *

A partir do século XIII, a Beira interior acolheu numerosas famílias provenientes de reinos vizinhos. O édito de expulsão levou porém à perseguição, à conversão, à dispersão, mas também à preservação da identidade histórica…


A fixação dos judeus em território português remonta ao final do Baixo Império, pertencendo a presença mais antiga documentalmente confirmada ao Algarve bizantino, sucedendo-se Coimbra e Lisboa. A presença judaica no interior foi mais tardia pertencendo o seu início já à segunda metade do século XIII, como no caso do povoamento de Bragança por judeus com D. Dinis, ou a fixação na Guarda em casas régias ainda no tempo de D. Afonso III mas, sobretudo, durante o reinado seguinte, ou em Évora, em solo pertencente ao município ou à sé.

Ou seja, o povoamento judaico do interior do território acompanhou a Reconquista mas também a necessidade de defender a raia portuguesa das investidas castelhanas mesmo depois de Alcanices. Era urgente povoar o reino para uma melhor defesa deste. Por isso, não podemos estranhar que a população judaica tivesse sido utilizada para este objectivo. Por outro lado, Portugal aparecia como um reino onde a convivência entre a maioria cristã e a minoria judaica decorria pacífica o que não acontecia nos reinos vizinhos, onde a minoria foi perseguida ou obrigada a converter-se em Aragão, durante a peste negra, em Navarra e em Castela onde os surtos persecutórios foram graves, quer em finais do século XIV, em Sevilha e arredores. Estas ondas de terror acabavam por empurrar as famílias judaicas para outras paragens e, nomeadamente, para o território português.

O aparecimento dos cristãos-novos

Ora, a Beira interior, território que aqui nos interessa, beneficiou com as imigrações de famílias provenientes daqueles reinos. Foi assim que Trancoso com a sua feira franca atraiu algumas em meados de Trezentos a que se seguiram outros concelhos, como Covilhã, Castelo Branco, Lamego ou Pinhel. A comprovar este facto temos a onomástica de origem toponímica, onde são visíveis os locais de proveniência, como Cáceres, Ávila, Valladolid, Navarro, entre muitos outros. Mas o cume da imigração ocorreria no século XV pois Portugal e as suas descobertas tornavam o reino atractivo para os judeus. Como se não fosse suficiente, a expulsão dos judeus de Castela, em 1492, pelos Reis Católicos iria trazer para o reino dezenas de milhar de seguidores da Lei de Moisés, duplicando no mínimo a população judaica e desestabilizando a relação social entre os judeus e entre cristãos e judeus.

Mas, se a imigração dos reinos vizinhos foi uma realidade que permitiu as comunidades judaicas multiplicarem-se no reino, a verdade é que a mobilidade no seu interior levou ao desaparecimento de umas ou à fixação em localidades rurais, onde as comunas nem as judiarias existiram, mas onde habitaram judeus mesteirais ou médicos. Teria sido o caso de Lardosa, Alcains, Sarzedas, entre outras, a que se juntariam outras localidades com a vinda nas duas últimas décadas do século XV – talvez receando a desagregação da política de tolerância que a Igreja preconizava para o relacionamento entre as duas religiões – como Belmonte, Fundão. Outras comunidades perdiam habitantes devido à mobilidade interna como Sabugal, Penamacor.

Este foi o tempo dos judeus, das suas comunas e judiarias ou rua dos judeus, fechadas ou não por portas, com as suas autoridades e sinagogas o qual terminou em 1496-97 com o édito de expulsão de D. Manuel, de 4 de Dezembro de 1496 e com o baptismo forçado da maior parte das famílias judaicas. Este baptismo de pé para os adultos ocorreu nas igrejas dos concelhos onde residiam e onde acabariam por permanecer e sucedeu aos baptismos das crianças de 19 de Março de 1497 e o do domingo de Ramos desse mesmo ano, conhecido pelo baptismo dos Estaus, mas que verdadeiramente ocorreu em diversas igrejas da cidade de Lisboa [1]. Após a recepção do baptismo forçado ou voluntário por parte de alguns, a minoria judaica tornava-se cristã. As ruas dos judeus abriam-se para a cristandade, deixando de existir portas e alguns dos becos que as encerravam e a circulação tornava-se livre, podendo os cristãos residir na antiga judiaria e os judeus passarem a habitar o concelho cristão. O baptismo, imposto ou livre, foi um meio que muitos procuraram para se poderem movimentar no reino e nas novas zonas descobertas ou na Espanha e no seu império ou, eventualmente, saírem da Península para regressar à religião dos seus antepassados em liberdade, como foi o caso Francisco Mendes Vizinho, astrólogo, filho de mestre Diogo Vizinho, o “Coxo”, da Covilhã, que emigraria na segunda metade do século XVI para Ferrara, ou de João Rodrigues de Castelo Branco, médico de papas e reis, conhecido por Amato Lusitano, por exemplo. Outro descendente dos Vizinho era João António Vizinho que testemunharia junto dos inquisidores os anos da partida do reino dos Benveniste [2].

A abertura a novas ocupações

Mesteirais, comerciantes, médicos ou rendeiros, os cristãos-novos substituíam as suas ocupações tradicionais por outras que lhes tinham estado vedadas, como advogados, procuradores, sem esquecer aquelas pelas quais não tinham manifestado antes grandes interesses como lavradores, criadores de gado, incluindo porcos. Baptizados passaram a ter acesso às carreiras eclesiásticas, quer regulares quer seculares. A aproximação à corte continuava a fazer-se e agora permitia que alguns deles entrassem nas ordens religiosas militares, nomeadamente Cristo e Santiago, em recompensa de feitos militares ou outros realizados no norte de África ou no Oriente.

Vejamos alguns exemplos. As relações familiares e económicas com o reino de origem dos antepassados eram mantidas pelos imigrantes baptizados. O comércio com Castela fora uma realidade enquanto judeus e permanecia após o baptismo, quando os descendentes já tinham nascido em Portugal. Fernão Ximenes e Joana Nunes eram castelhanos e fixaram-se na Covilhã onde nasceram e foram baptizados os seus seis filhos. Francisco Ximenes era mercador e rendeiro das rendas dos dízimos do cardeal infante D. Henrique e residia em Évora. Isabel Ximenes era viúva de Fernão Álvares e morava na Guarda, tal como a irmã Beatriz Ximenes, casada com António Rodrigues Galvão, mercador. Francisca Ximenes era viúva de Jorge de Matos, ourives e mercador da Covilhã. O dr. Duarte Ximenes vivia na corte pois era físico do rei D. João III e antes fora-o do infante cardeal D. Afonso, filho de D. Manuel. Por sua vez, Gaspar Ximenes era mercador e residia em Évora, tal como Francisco. Duarte Ximenes casara com Isabel Rodrigues, filha de mestre Rodrigo, físico na corte, cristão-novo e Gaspar tomara por mulher Isabel Pires, irmã da primeira esposa de Francisco Ximenes. Francisco Ximenes costumava frequentar a feira de Medina del Campo e tinha negócios em Bilbao e na ilha de S. Tomé [3]. Podemos considerar a família Ximenes como o modelo de muitas famílias cristãs-novas : os descendentes dispersos em relação à residência dos progenitores e dividindo-se entre o comércio, os ofícios e a medicina.

Violante Rodrigues era natural e residente em Castelo de Vide. Estava casada com o boticário Diogo Rodrigues. Os seus irmãos dispersaram-se. Um, Simão Pais, mercador, permanecera nesta vila, assim como outros dois. Álvaro Pais fizera-se lavrador em Montalvão, vila que não conhecera judeus. Uma sua irmã fora casar em Sarzedas com o mercador Jerónimo Fernandes. Simão e Álvaro Pais tinham sido relaxados. Tivera dez filhos que residiam um em Lisboa, dois na Mancha de Espanha, outra em Torres Novas. Apenas um dos filhos casados residia em Castelo de Vide juntamente com os solteiros. Uma das filhas que vivia na Mancha casara com um cristão-novo castelhano [4].

Inês Vaz, natural de Monsanto, partira para Lisboa com os filhos para ter a oportunidade de embarcar para a Flandres, enquanto o marido permanecia em Castelo Branco onde tinha loja de panos, e negociava em Castela. Em Lisboa, para onde viera em 1538, fora morar à Porta Nova. No ano seguinte, mudou-se para o Beco do Serrão e depois para o Poço da Fotea, onde acabaria por ser presa pela Inquisição, sob a acusação de judaizar e de querer sair do reino para a Flandres. O filho Simão vendia roupa da Índia “por esse mundo” e os restantes cinco filhos e filhas viviam em Lisboa embora tivessem nascido em Castelo Branco. As suas irmãs viviam duas em Ferrara com o tio e uma outra em Londres, casada com o mercador Pedro Jorge. Nas suas confissões, declarava ter jejuado o Yom Quipur com uma Isabel Rodrigues, cristã-nova do Fundão, que já saíra do reino. Outros cristãos-novos do Fundão tinham partido para a Flandres, como Diogo Gonçalves que fora viver para esta região onde deixara a mulher e regressara a Lisboa para tratar de negócios. Todos eles integravam um grupo onde se discutia a vinda próxima do Messias que havia de conduzir todos os cristãos-novos a Jerusalém [5].

Pelos quatro cantos do mundo

Álvaro Rodrigues nascera no Fundão e fora casar-se a Castelo de Vide com Joana Vaz, filha de um Pedro Gonçalves que partira para Salónica. Anos depois de casar-se fora residir em Vila Viçosa [6]. Francisco Fernandes nasceu em Porto da Carne e aqui vivia quando foi preso e levado para a Inquisição de Évora. Era meio-cristão-novo pois o pai, Domingos Gonçalves, era cristão velho. O tio paterno era também casado com uma cristã-nova, Maria Fernandes, e residia na Faia, assim como a tia paterna, Beatriz Gonçalves, viúva, cujo marido também era descendente de judeus. Esta residia no Barrocal onde casara com o sapateiro Simão Gonçalves, cristão velho. As irmãs de Francisco Fernandes casaram ambas com cristãos-novos. Uma residia no Porto da Carne, termo da Guarda, como ele, e tinha como marido um castelhano. Fora baptizado em Nossa Senhora do Soveral, em Muxagata. Apesar de dizer que ia à missa e se confessava por respeito social, a verdade é que não estava bem doutrinado, não sabendo persignar-se nem rezar as orações cristãs. Casara com Ana Fernandes, uma cristã-nova natural do Carapito, filha de Catarina Gomes e de Fernão Rodrigues aqui residentes. Do matrimónio tinham nascido 4 crianças : Isabel de 7 anos, António e Francisco que iam a caminho dos 5 e dos 3 anos, respectivamente, e Pedro ainda bebé. Ele e o cunhado também chamado Francisco Fernandes, morador em Meda, seriam acusados de procurar convencer as testemunhas de acusação de Catarina Gomes, presa por práticas de judaísmo, a negarem o seu testemunho. Um delas era Ana Lopes que servira em casa desta e lhe respondera que muita sorte tinha ele por não envolver na acusação a mulher e as irmãs, pois todas elas judaízavam com a mãe quando viviam em sua casa. E nesta acusação estava a guarda do sábado, do Yom Quipur, assim como cozer a carne de porco em panelas diferentes daquelas em que cozinhavam os outros alimentos.

Na sua confissão voluntária, Francisco Fernandes confessaria ter sido doutrinado na Lei de Moisés pela avó materna, já falecida, com quem jejuara um Quipur, pelo que não estranhara as práticas judaicas em casa da sogra, nas quais ele também participara tal como a mulher, passando a encomendar-se a Deus que fizera o céu e a terra, o mar e as areias e a rezar “Senhor, Deus do céu e da terra, lembrai-vos de mim e dai uma esmola a meus filhos” [7].

Os Milão eram também o exemplo de uma família dispersa pelos quatro cantos do mundo. Manuel Lopes de Santa Comba Dão e a mulher nasceram e viveram neste concelho. O filho Henrique Dias Milão viera casar a Lisboa com uma filha de Francisco Rodrigues Milão, mercador e aqui ficara a morar na Rua Direita da Mouraria, antes de ir com a família e criados para uma quinta com tercenas e cais, junto ao rio de Alcântara. Aqui tinha como vizinhos a família cristã-nova de Vasco Fernandes César que habitava numa quinta próxima e com quem se viria a relacionar. O outro filho, António Dias de Cáceres, partira para as Índias espanholas, tendo a mulher sido condenada por herege pela Inquisição, no México, e mantinha negócios em Angola. Um outro, Francisco Lopes, fora para a Índia portuguesa.

A família de Henrique Dias Milão e a sua criadagem cristã-nova originária da Guarda e da vila de Melo, incluindo uma índia escrava judia, seriam presas no rio Tejo quando se preparavam para embarcar num navio rumo a Amesterdão. Dois dos filhos e uma filha que escaparam à prisão viviam em Pernambuco. Uma outra filha estava casada em Hamburgo. Outra estava esposada com um primo médico que vivia em Roma. Enquanto uns tentavam a fuga, o filho mais novo, Paulo Milão, permaneceria em Lisboa a tratar dos negócios da família. No elenco das suas testemunhas de defesa, entre cristãos velhos e novos, verificamos que estes últimos, todos mercadores, residiam em Lisboa na Rua do Chiado, na Calçada do Carmo, em S. Nicolau, ao Chafariz d’El-Rei, em Valverde, outros dispersavam-se por S. Mamede. Nem todos são identificados claramente como cristãos-novos, mas os apelidos que trazem consigo não enganam, como o Manuel Drago, sogro de Paulo Milão, cuja família era originária de Trancoso, ou Gaspar Fernandes Penso [8]. Paulo Milão seria entregue à justiça secular, até que confessaria ser judeu. Admitido à reconciliação, seria condenado a cárcere e hábito perpétuo sem remissão. Acabaria por fugir e emigraria para Amesterdão, onde viria a residir, sendo um dos judeus de Amesterdão denunciados por Paulo Garcês.

A fixação em terras do interior

De Freixedas, arredores de Pinhel, partiram para as minas dos Campos da Cachoeira, onde se extraía ouro, Manuel Nunes da Paz, filho de Diogo Nunes Henriques, e o seu primo Manuel Nunes, curtidor, e a mulher. Também daqui era natural António Rodrigues, homem de negócios, filho de António Rodrigues, que fora viver para o Sertão das minas de ouro. No Ouro Preto, Ceará, a comunicação da observância judaica dera-se com Jerónimo Cardoso, também natural de Freixedas e morador na cidade da Baía. De Almeida fora em busca do ouro e da liberdade religiosa José Henriques, o “Carregado” de alcunha, feitor das dízimas, e agora morador na vila de Ribeirão do Carmo. Do mesmo concelho, era natural Luís Nunes que fora residir para o Rio de Janeiro. No arraial de Guairapiranga, termo de Ribeirão do Carmo, em casa de Miguel da Cunha, natural de Idanha-a-Nova, dizimeiro, Francisco Ferreira declarara-se crente judeu. Sobre o mesmo assunto conversara no Rio de S. Francisco e a caminho das Minas do Fanado com Manuel da Cunha, contratador de gados, irmão daquele. De Vilarinho dos Galegos saíra para o Ouro Preto, nas Minas Gerais, José Gonçalves, filho de Manuel Gonçalves, tratante. De Pinhel, saíra Miguel da Silveira para as Minas do Fanado. Da Guarda, partira para Guarapiranga, termo da vila de Ribeirão do Carmo, João Nunes de Lara, filho de João Nunes de Lara e da Covilhã saíra Carlos Mendes. Também natural deste concelho conhecera e comunicara no Rio das Pedras com António Rodrigues Casado. No Rio de Janeiro, contactara com Manuel de Albuquerque, natural de Castelo Rodrigo e morador nas minas do Ouro Preto. De Celorico para as Minas do Fanado, vieram Manuel Dias de Carvalho, casado com Leonor Mendes da Silva, o seu irmão Luís da Silva Góis, filhos de António da Silva Góis, tratante, e de Isabel de Morais, naturais e moradores em Celorico. Todos comunicavam uns com os outros a sua crença na Lei Velha [9].

A mobilidade permitia a fixação de cristãos-novos em locais do interior de Portugal onde a memória dos judeus era inexistente ou quase, como em algumas das localidades que acabámos de mencionar, como Freixedas, arredores de Pinhel, Muxagata, termo de Fozcoa ou Vidago, arredores de Chaves, Santa Comba Dão, Melo, Mangualde. Mas outros mais podemos encontrar, como Figueiró, termo de Linhares, onde residia Violante Nunes, casada com o mercador Simão Nunes, natural de Melo [10]. Noutros concelhos onde a presença judaica era muito reduzida na altura da expulsão, verificou-se um povoamento cristão-novo que os transformava em mero espaço de deslocação para outros lugares onde a tradição judaica era desconhecida assim como eles próprios como judeus ou seus descendentes.

Foi talvez o caso de Belmonte, concelho que teve o seu povoamento judaico originado com a vinda dos judeus castelhanos para Portugal, e, sobretudo, com os cristãos-novos, muitos deles oriundos de outros concelhos beirãos. Foi o caso de António Fernandes, mercador, com negócios em Castela, cuja família era originária do Fundão, onde residiam alguns dos irmãos, e de Gouveia onde moravam os tios maternos [11].

O mesmo deve ter acontecido no Fundão onde a população judaica só se instalou em vésperas da expulsão, como o físico mestre Boino Abolafia [12]. O seu povoamento coincidiria com a movimentação de muitas famílias cristãs-novas da Covilhã e da Guarda para o termo dos respectivos concelhos, ainda na centúria de Quinhentos. Encontramo-los a residir em Valverde, no Tortosendo, no Teixoso e em pequenas aldeias nos arredores da Covilhã. Beatriz Rodrigues era natural do Fundão e estava casada com António Fernandes, o “Sete Cabeças”, meio-cristão-novo, tosador e tecelão de profissão. Neste concelho viveram Isabel Henriques e Rui Dias, os pais de Beatriz também já falecidos, ou Guiomar Vaz que conseguira fazer-se sepultar em terra virgem. Beatriz Rodrigues seria denunciada quando da visitação à Beira, tal como Guiomar Dias, mulher de António Dias, residentes em Valverde. Confessaria que costumava jejuar os Thanis, o Quipur e o jejum da rainha Ester, assim como celebrar a Páscoa do pão ázimo com Catarina Rodrigues, sobrinha de Isabel Henriques. As irmãs continuavam a morar no Fundão, apesar de uma delas ter ido viver para Almendra durante quase vinte anos, após o que regressara à terra onde nascera. Os dois irmãos tinham partido, um para Sevilha e o outro para o Peru e nunca mais voltaram ao reino [13].

A persistência das celebrações judaicas

António Pinheiro ou António Diogo era filho de Diogo Pinheiro e de Ana Rodrigues. Não sabia se tinha nascido na Covilhã ou no Fundão, mas fora neste concelho que fora baptizado e recebera o crisma. Saiu da Covilhã com a mãe e os irmãos para parte incerta até que chegou a Lisboa com a irmã mais nova, Guiomar Pinheiro. Aqui seriam presos pela Inquisição. Confessaria ter jejuado o Yom Quipur com os primos Cristóvão Pinheiro e Heitor Lopes, assim como com a mãe e os seus irmãos. Era tratante e negociava em Castela, assim como os seus familiares. Em Yepes para onde se deslocara em negócios jejuara um Quipur com o irmão Manuel Pinheiro. Em Ponferrada, para onde a mãe e o irmão Manuel Pinheiro tinham ido viver, a família costumava reunir-se para as suas celebrações judaicas, nomeadamente os jejuns. O irmão Cristóvão Pinheiro residia em Cidade Rodrigo e Lourenço Pinheiro tinha casa em Famalicão, arredores de Valhelhas, perto da Covilhã. Deslocava-se frequentes vezes a Castela, nomeadamente a Salamanca, onde pousava numa casa em que viviam estudantes portugueses naturais da Beira e de Trás-os-Montes. Nesta cidade, costumavam celebrar a Páscoa do pão ázimo não comendo qualquer espécie de pão durante a semana. Alguns destes já tinham passado pelos calabouços da Inquisição de Valladolid como Gomes da Fonseca, natural de Penamacor, que, pelo depoimento de António Pinheiro, era o mentor religioso da família ensinando-lhes os jejuns, a rezar os sete Salmos sem dizerem a Glória no final. A irmã Beatriz Pinheiro seria presa em Castela pelo Santo Ofício de Valladolid, talvez quando fugia do reino. A outra irmã Filipa Nunes casada com o mercador Diogo Vaz estava presa em Coimbra. Ele e Guiomar encontravam-se presos em Lisboa, para onde, segundo declaração de António Pinheiro, se tinham deslocado com o objectivo de se apresentarem no Santo Ofício e confessarem os seus erros [14].

Francisco de Almeida era um jovem de ascendência judaica, tendeiro de profissão ou mercador de especiarias como também se identificava. Tal como o apelido indicava Almeida era o local de naturalidade da família. Ele nascera em Mangualde de Azurara, bispado de Viseu, e residia no Tortosendo. O progenitor chamava-se Francisco de Almeida Gatinho, natural de Almeida e aqui morador, embora tivesse falecido em Lisboa. A sua mãe era Branca Henriques, natural da Guarda e moradora no Tortosendo, como ele. Os avós maternos, António Henriques, mercador, e Beatriz Nunes tinham nascido na Guarda. O avô era já falecido e a avó depois de enviuvar fora residir no Teixoso, arredores da Covilhã. Os tios paternos, rendeiros, nascidos em Almeida, viviam agora em Vilar Turpim, excepto um deles que partira do reino e cujo paradeiro desconhecia. Um dos primos estudava em Coimbra. Os tios maternos, nascidos na Guarda, viviam no Teixoso, excepto o Belchior Mendes casado com Mariana Henriques que vivera e falecera na Covilhã. Na declaração dos seus parentes afirmava que tinham sido presos na Inquisição os primos Francisco Mendes e Ana Josefa, e Pedro de Almeida e chamados ao tribunal o tio José Mendes e um outro seu primo, Frederico.

Na sua confissão, lançava nomes de pessoas com quem contactara como Leonor Nunes, a “Dona”, natural do Sabugal e residente na Guarda, a “Ferradora”, mãe de Manuel Rodrigues Sarzedas, mercador na Guarda e natural de Penamacor, já falecidas as quais o teriam introduzido na Lei de Moisés, tendo passado a jejuar os jejuns judaicos como o Yom Quipur, a guardar o sábado, a rezar o Pai Nosso sem dizer “Jesus” no fim da oração, a rejeitar os alimentos proibidos pela Lei judaica. Acrescentava que contactara na Guarda à porta do curro com o seu tio José Mendes, filho de António Henriques, mercador, e de Beatriz Nunes, moradores no Teixoso, tendo ambos se declarado judeus um ao outro. O mesmo se passou com José Mendes Monsanto, tintureiro, natural de Monsanto e morador na Covilhã, seu parente, com Rosa Maria, mulher de José Mendes Madeira, mercador, filha de Jacinto Mendes, mercador, e de Maria Mendes, moradora na Guarda e presa no Santo Ofício. Também se declarara judeu com o seu meio-irmão, filho do segundo casamento de sua mãe com Duarte Rodrigues, mercador, e ele também mercador. Igual convivência tivera com Álvaro Bonito, no lugar da Cortiçada próximo de Alpedrinha, mercador residente no Fundão, filho do Bonito, mercador neste concelho. O mesmo sucedera na vila do Sabugal em casa de Francisco Nunes de Lara, casado com uma sua prima, onde esteve reunido com o seu primo filho de João Henriques, mercador, natural de Almeida. Aqui, na casa de um primo Francisco Rodrigues Penha, mercador, ambos conversaram sobre a observância judaica. Outros membros desta família eram enumerados nesta declaração de seguidores da tradição judaica, nomeadamente da prática do jejum do Yom Quipur.

Uma mobilidade dispersadora

Na confissão, entravam também vizinhos e conhecidos como o mercador de sola António de Carvalho Fontes, morador na Guarda, filho de Heitor Mendes. A sua confissão de observância da Lei de Moisés estendia-se a Alpedrinha onde vivia o ferreiro Domingos Lopes com quem também trocara algumas práticas sobre o mesmo assunto. Este tinha uma filha casada com Gaspar Mendes Vargas, mercador, que já fora ferreiro, e residia na Guarda. Os contactos estenderam-se a outras famílias como os Mendes Navarro, da Guarda, ou os Henriques Cachimbo da Covilhã, ou, mais longe. Falavam entre si sobre a Lei dos judeus porque eram parentes e amigos. Alguns já tinham sido presos pelo Santo Ofício, como Isabel Henriques, mulher de José dos Rios, ou Manuel Lopes Alves, mercador, residentes na Covilhã.

Manuel Lopes Alves declarara-se com ele por judeu e dera-lhe um papel onde estava escrita uma oração que ele passara a rezar e que dizia assim : “Piedoso Senhor de Moisés, criador do universo que eu a vós só me confesso por mui grande pecador e por tal me conheço. Perdão geral vos peço de minhas culpas e erros. Não me deis vós Senhor o que eu mereço, olhai só o que padeço, que vós Senhor que acudistes àquela cidade em seu choro e acudis aos aflitos desarranjados, acudi-me Senhor que em vós creio e adoro, que maiores são os vossos divinos poderes para vós Senhor me fazeres vosso servo e temente”.

Os Mendes-Henriques, os Nunes-Lara ou os Mendes de Leão afirmavam seguir a Lei de Moisés porque nela acreditavam salvar-se. A estes juntavam-se os Fróis de Idanha-a-Velha, moradores na Covilhã, os Marchela (Marchelão ?) de Penamacor, cruzados com os Henriques e os Lara, e residentes no Fundão ou na Covilhã, ou os Nunes Rios, moradores nesta última, ou os Pessoa, os Rodrigues Preto e os Mendes Oróbio, parentes por afinidade. As suas casas ou sítios afastados dos locais de residência eram pontos de encontro como a ribeira do Côa, o terreiro da igreja de Nossa Senhora de Jacapato (?), arredores de Alfaiates, a estalagem do Carvalho ou o terreiro da feira em Pinhel, o sítio designado por “chão do Navarro” na Guarda, o terreiro do cais na Covilhã, o mercado do Fundão, “um sítio distante meia légua” da vila de Melo, o lugar da Gata, distante uma légua da Guarda, ou o sítio de Nossa Senhora da Granja, em Proença, uma vinha no sítio da Ponte Pedrinha, nos olivais ou a caminho da fábrica, na Covilhã, etc.

Estamos perante uma família alargada de mercadores, rendeiros, médicos, tintureiros e sapateiros que se cruzou também com os Matos, como Ana Henriques desposada com João de Matos, tratante que esteve em Minas, no Brasil, território para onde se ausentara também Margarida de Almeida, mulher do mercador Manuel Henriques de Leão. Os seus membros tinham o seu círculo de parentesco definido entre Almeida a Norte e Idanha-a-Velha e Monsanto, a Sul, e o seu centro na Guarda e na Covilhã. A mobilidade dispersava-se pelas aldeias, vilas e cidades da Beira, onde as famílias cristãs-novas se foram fixando em negócios, por casamento ou por necessidade de fugirem a olhares indiscretos e desconfiados. Excepcionalmente alguns membros da família tinham emigrado para parte incerta do Brasil como Diogo Henriques Romano, que tinha sido preso pelo Santo Ofício [15].

A preservação da identidade histórica

Jorge Nunes, tratante, casado com Josefa Maria era natural do Fundão e fora residir para a Aldeia Nova do Cabo. O pai era ferreiro, natural do Fundão e falecera em Lisboa, enquanto a mãe nascera em Proença. Os avós paternos eram naturais de Idanha-a-Nova, onde ainda viviam os tios e primos, e os maternos foram naturais e moradores em Proença. Um dos primos, Manuel Rodrigues Morão fora morar para Penamacor. Tinha cinco irmãos que nasceram uns, os rapazes, em Idanha, e as raparigas na Covilhã. A mulher era meia-cristã-nova e era prima dele, sendo meia-irmã de Manuel Rodrigues Morão. Um deles residia em Salvaterra, junto a Idanha. Confessava saber ler e escrever, embora não tivesse aprendido qualquer ofício. Declarava nunca ter saído do reino, tendo as suas deslocações ocorrido sempre entre o Fundão e a Aldeia Nova do Cabo.

Aprendera a observância da Lei de Moisés com Rodrigo Lopes, no Fundão, que lhe ensinara quando caía o grande jejum do mês de Setembro (Yom Quipur), que cumpria vestindo roupa lavada e estando sem comer até cair a estrela, a guarda dos sábados. Conversara sobre a sua crença judaica com o cunhado Henrique da Silva, filho de Tomé da Silva Estanco, natural de Portalegre e residente no Fundão. Aquele fora viver para Lisboa e depois para Coimbra onde estudava na universidade. Confessara a sua observância judaica a um primo, João Rodrigues, cirurgião, morador em Idanha-a-Nova, e a outro seu parente Francisco Nunes de Paiva, mercador, filho de Gaspar Rodrigues, mercador de Penamacor. Em casa de sua prima Maria Mendes, casada com Francisco Nunes de Paiva e moradora em Alpedrinha comunicou a sua fé a estes parentes. Nas suas confissões denunciava tios e primos residentes no Fundão, em Idanha-a-Nova, em Lisboa. Mas, também, confessava ter tido estas práticas com conhecidos residentes na Covilhã, como com Domingos Lopes, ferreiro, e sua família os quais foram residir para Alpedrinha, com os seus primos moradores no Teixoso com os quais celebrara uma Páscoa do pão ázimo. Confessara a sua crença em casa de Joana da Cruz, residente no Fundão, com Ana Pereira, ambas presas no Santo Ofício de Lisboa, ou em Penamacor, nas casas dos primos Manuel Rodrigues Morão, já falecido, mas que fora presente ao Tribunal, e Francisco Rodrigues Morão. Juntaria a sogra, as irmãs, algumas delas presas, e a mulher à conivência na prática e observância de jejuns, Páscoa e sábados judaicos. Confessaria rezar o Pai Nosso, sem dizer “Jesus” no fim. Declarava ter comunicado a crença judaica com Francisco de Almeida, tratante, morador no Tortosendo, quando viajaram juntos de Alpedrinha para Belmonte e que se encontrava preso [16].

Em suma, esta pequena abordagem por mim estudada e já publicada em diferentes trabalhos sobre os cristãos-novos e, neste caso da Beira, reflecte a mobilidade a que os cristãos-novos, tal como os seus antepassados judeus, praticaram de modo a poderem manter a sua identidade histórica e a sua alteridade como povo.


* Autora de uma extensa bibliografia sobre o tema dos judeus e dos cristãos-novos, a professora Maria José Ferro Tavares é membro externo do Conselho Geral da UBI.


O subtítulo, os intertítulos e a nota biográfica são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.


[1] Sobre esta matéria : Maria José Ferro Tavares, Os Judeus em Portugal no século XV, vol. I, Lisboa, UNL, 1982 ; vol. II, Lisboa, INIC, 1985.
Maria José Ferro Tavares, Judaísmo e Inquisição, Lisboa, Presença, 1985.
[2] Pier Cesare Ioly Zorattini, “Processi del S. Uffizio di Venezia contro Ebrei e Giudaizzanti (1570-1572)”, in Storia dell’Ebraismo in Itália. Studi E Testi, vol. V, Florença, 1984, p. 8, nota 2 e pp. 7-34.
[3] IAN/TT, Inquisição de Évora, nº 11761 (Francisco Ximenes, 1542).
[4] IAN/TT, Inquisição de Évora, nº 6011 (Violante Rodrigues, 1571).
[5] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 103 (Inês Vaz, 1553).
[6] IAN/TT, Inquisição de Évora, nº 8031 (Manuel Lopes Chaves, ano de 1579).
[7] IAN/TT, Inquisição de Évora, nº 6124 (ano 1575).
[8] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 3338 (Paulo Milão, 1606-09).
[9] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 6 (Francisco Ferreira da Fonseca, 1732).
[10] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 39-1 (PT-TT-TSO/IL/28/39, Violante Nunes, 1542).
[11] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 7637 (António Fernandes, 1569).
[12] IAN/TT, Chancelaria de D. Manuel, liv. 32, fl. 43.
[13] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 379 (PT-TT-TSO/IL/28/379, Beatriz Rodrigues, 1579-87).
[14] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 607 (PT-TT-TSO/IL/28/607, António Pinheiro, 1569).
[15] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 5 (Francisco de Almeida, 1732).
[16] IAN/TT, Inquisição de Lisboa, nº 16 (Jorge Nunes, 1732).