Escritas Dois poemas

António Salvado, poeta e escritor
Eduardo Aroso, professor de música, compositor e poeta
Miguel Elías, pintor e professor da Universidad de Salamanca

Quando um dia se voltar ao tema da autenticidade da obra de arte – neste caso da poesia —, relembrando a lição que o contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa, Adolfo Casais Monteiro nos dá na sua obra «A Palavra Essencial», tomar-se-á também a palavra de António Salvado como fruto exemplar.


O poeta do interior do país, que conheceu também a urbe, interveniente em alguns momentos nevrálgicos da poesia portuguesa, como o da «Távola Redonda», ao lado de David Mourão-Ferreira, que teve carta de Pascoaes e ensaio de João Gaspar Simões, na tentação dos gostos dobrados às modas e conveniências, sempre resistiu a autenticidade da sua palavra, a palavra essencial. «Porque a terra onde cresces é faminta/ de trigo não havido». Aceitação para superação em ânsia de plenitude, já que a poesia não se contenta com menos. Nesta assunção da realidade, para fazer dela uma outra, a solidão, não sendo, porque então povoada pelo contágio inebriante dessa fidelíssima presença, que, repito, se chama autenticidade: «…e continuo colocando na jarra/da minha solidão o colorido diverso/das flores silvestres anónimas e cálidas».
Eduardo Aroso


Nasci longe do mar por isso
nunca soube fazer estátuas de sal
nem cultivei ambições de descobrir
impensáveis continentes ou ilhas
o meu chão nunca foi de areia
movediço e sem configuração
os meus pés pisaram terra dura
e as paredes do lugar onde vivi
possuíam a dureza densa do granito
Tivemos em comum as estrelas do céu
e o luar de janeiro e o nascer e o pôr
do sol e as quatro estações a sucederem-se
com as cores próprias de cada tempo
em comum ainda as alegrias as tristezas
a azáfama de cada dia e a vida e a morte
o meu horizonte campeava de flores silvestres
e de animais alguns ferozes mas que não sabiam
nadar enganar a trepidação das ondas fugir
às tempestades dos cabos traiçoeiros
de grande variedade e de férteis fragâncias
serenamente sem ambições de competirem
ou então de troncos vigorosos e nutrizes
no meu horizonte não balouçavam náufragos
e quando alguém chorava eram lágrimas
apenas de despedida de adeus até
mais ver no além que fica no além do além
Às vezes sinto embora leve a mágoa
de não ter embarcado e sulcado mares
mas a pureza sobrepõe-se a todas as ambições
e continuo colocando na jarra
da minha solidão o colorido diverso
das flores silvestres anónimas e cálidas.
António Salvado

Lembrança de O XISTO
Negro azulado enforma as suas folhas
que são lâminas castas divididas,
mas que no fio agudo e ceifador
vertem ainda o sangue com suor
daqueles que, longe de ti, partiram.
Porque a terra onde cresces é faminta
de trigo não havido e de água pura, 
esses que em ti nasceram (peregrinos
de rotas vias sendas tão sozinhos)
sem te esquecerem outras aventuras
buscaram, aos reveses indif’rentes,
nas esperança de que as lâminas deixassem
de lhes ferirem a saudade ardente
e que a cor que é a tua como alento
se tornasse — tal prémio — bem mais clara.
António Salvado




Miguel Elías