Reflexão Os distúrbios do consumo

Práxedes Blázquez, coordenadora de projetos na associação Beira Serra [*]

No fim de contas, toxicodependências e adições são antes do mais consequência de um modelo económico em que muitos aspetos sociais se tornaram meras mercadorias…

Tudo leva a pensar que, hoje em dia, muitos distúrbios que afetam tanto os jovens como os adultos, estão ligados ao consumo e às adições. Consumo de substâncias psicoativas lícitas e ilícitas, anorexia e bulimia, adição ao jogo e compras compulsivas, sobrevalorização e ditadura das marcas particularmente direcionadas às crianças e aos jovens (roupas, acessórios, livros, jogos, brinquedos).

Somos constantemente incitados a consumir : a edição de literatura juvenil assume frequentemente a forma de trilogias, os filmes têm continuação e as sagas duram por vezes anos. Basta ir a um supermercado para comprovar que, na conjuntura de crise em que vivemos, os preços são sempre muito mais em conta em grandes quantidades : mas será que precisamos mesmo de quarenta pacotes de guardanapos em papel ? Em suma, o consumo é apresentado como a única resposta para satisfazer necessidades ou inclusive resolver problemas.

Satisfazer o desejo de imediato

Se analisarmos a publicidade, e mais especificamente aquela que é destinada aos jovens, a mensagem implícita e subtil é a seguinte : a decisão é só tua, podes ter o que quiseres, tu é que sabes. Ou seja : o prazer é indissocialvelmente ligado ao consumo. A doutrina liberal apresenta assim o consumo não como um meio mas como um fim, incita ao consumismo desenfreado, sem entraves nem regulação, e, claro está, não controla as consequências que ela própria engendra : o sobre-endividamento que atualmente afeta cada vez mais as famílias.

É de facto curioso verificar que muitos aspetos sociais se tornaram mera mercadoria. A ecologia por exemplo, que deveria ser um princípio de vida, é hoje um mercado com alto potencial de rentabilidade (equipamentos solares, habitações bioclimáticas,…) ; o ensino tornou-se um mercado potencialmente rentável (aumento exponencial de explicações e escolas privadas para promover o sucesso perante um sistema cada vez mais competitivo) ; até a espiritualidade se tornou mercadoria (igrejas que adquirem bens imobiliários valiosos e solicitam contribuições financeiras aos seus fiéis seguidores). O próprio conceito de solidariedade adquire um valor mercantil quando tanto se fala hoje em dia em «economia solidaria».

Em suma, somos todos vítimas da nova máxima : consumir cada vez mais para nos sentirmos melhor. Então, objetivamente, por que ficar perplexos perante todos os comportamentos e condutas de excesso ? É o caso, por exemplo, do consumo juvenil de álcool, cada vez maior e mais preocupante, até a embriaguez, ao coma etílico e à morte. Desta forma, o último jogo em linha denominado Neknominations, que parece estar a fazer furor, já matou uma centena de jovens pelo mundo fora, consistindo em ingerir grandes quantidades de álcool num curto espaço de tempo, filmar a “proeza” e divulgá-la nas redes sociais.

Perante este cenário, é difícil, para não dizer hipócrita, adotarmos atitudes moralizadoras. No fundo, a situação que vivemos é consequência direta da mensagem que está na ordem do dia : é possível satisfazer o desejo, de imediato e quase sem custo ou esforço.

Em sintonia com a sociedade

É neste âmbito que as associações, na área da prevenção ou redução de riscos e minimização de danos, podem assumir um papel fundamental. De facto, as associações, porque menos dependentes da tutela e mais preocupadas pelas pessoas e não tanto pelas estatísticas oficiais do número de toxicodependentes em tratamento ou reinserção, devem, pelo conhecimento do território, dos seus problemas e das pessoas que lá vivem, ser veículos de regulação e contribuir para pôr em causa preconceitos, alarmismos, moralismos ou políticas meramente economicistas.

As drogas existem desde sempre e estão frequentemente ligadas a aspetos culturais como a religião, as tradições, as superstições, a cultura local. Pelo que, o importante, é a forma como aprendemos a lidar com elas e muito menos a valorização de um discurso dominante e redutor comummente aceite : para acabar com as drogas, basta legalizá-las ou prender os traficantes. O perigo consiste em considerar que existem toxicodependentes bonzinhos (dependentes de álcool, tabaco, soníferos, antidepressivos, jogo) e toxicodependentes estúpidos (que se drogam por tudo e por nada, ou seja para fugir a dor ou para obter um prazer imediato, intenso e fugaz).

Será que, finalmente, as dependências e os comportamentos de abuso, em vez de serem condutas desviantes, não estarão, pelo contrário, em perfeita sintonia com a sociedade liberal, capitalista e consumista que valoriza a obtenção do prazer imediato, nem que seja a crédito ? Será que uma população constituída exclusivamente por toxicodependentes não seria o sonho de todos os comerciantes ? Ora o problema das drogas é mesmo esse : a miragem que induzem porque, atuando na dor mas não na causa, transformam a nossa perceção do mundo e não o mundo em si. Por isso o objetivo de uma intervenção preventiva ou de redução de riscos deve ser o de estimular a reflexão para permitir a cada um a adoção de escolhas conscientes e informadas.


O titulo, o subtítulo e os intertítulos são da responsabilidade da redação de Notas de Circunstância.


[*] Coordenadora de projetos de prevenção em contexto escolar, comportamentos de risco, toxicodependências e adições na associação de desenvolvimento local Beira Serra.