Reflexão A perspetiva ausente

J.-M. Nobre-Correia, professor emérito da Université Libre de Bruxelles (ULB)

Não é possível procurar traçar a história de um jornal num período de tempo limitado sem procurar situá-lo naquilo que fora antes e viria a ser depois. E muito menos se se focaliza a diligência em torno sobretudo de um homem…

Diga-se desde já que Os Saneamentos políticos no Diário de Notícias, de Pedro Marques Gomes [1], é um livro muito documentado. Não só o autor consultou um número bastante vasto de jornais portugueses e de arquivos sobre o período estudado (o “Verão Quente de 1975”, subtítulo do livro), dando as devidas referências, como entrevistou 22 personalidades ligadas de perto ou de longe ao tema do livro. Já o facto de o autor se ter limitado a consultar um diário brasileiro e outro inglês é bastante decepcionante : não foi certamente nestes dois países que os acontecimentos portugueses da época tiveram maior repercussão.

Outro aspeto que deixa a desejar é a falta de sentido de síntese. À medida que se avança na leitura do livro, vai-se ficando com a sensação desagradável que os mesmos elementos de informação e os mesmos argumentos já tinham sido abordados uma vez e outra em páginas anteriores. Embora a escrita seja escorreita, o que não deixa de constituir um aspeto positivo para o leitor.

O desagradável e o insatisfatório

Há porém neste livro um aspeto bastante desagradável e outro claramente insatisfatório. O aspeto desagradável é o que consiste antes do mais num requisitório ad hominem no que diz respeito a José Saramago, o diretor adjunto do Diário de Notícias de 10 de abril a 25 de novembro de 1975. Mesmo o diretor Luís de Barros merece uma certa benevolência da parte do autor. E até, numa passagem do livro, se dá a entender que o Partido Comunista Português até poderia não estar de acordo com tudo o que se passava no Diário de Notícias (pp. 226-227 e 275-276) …

Ora que José Saramago tenha sido o deus ex-machina, único responsável da situação lamentável que o Diário de Notícias e a sua redação atravessaram, não parece ficar indiscutivelmente demonstrado. Embora fique patente a profunda aversão de Marques Gomes em relação ao futuro prémio Nobel de literatura. E o autor está no seu direito de experimentar o sentimento a que a sua personalidade, a sua formação intelectual e as suas opções ideológicas o levam.

Já a falta de enquadramento da direção do Diário de Notícias por Barros e Saramago e os saneamentos que lhes são devidos (na medida mesmo em que os assumiram) na história da imprensa da época é por demais criticável. Como procurar explicar o que foi a orientação do Diário de Notícias e a crise no seio da redação, se não se faz referência ao que aconteceu nos outros jornais ? E como expor e interpretar o que aconteceu sob a direção de Barros e Saramago, se não se enquadra esta fase da vida do jornal, estudando a situação da redação antes do 25 de Abril. E sobretudo o que foi antes da direção Barros-Saramago. E também o que foi depois desta mesma direção.

Em história, e é de um livro de um historiador que se trata, não se pode estudar um período da história ex nihilo, como se ele não se inserisse num contexto (neste caso : jornalístico e editorial). E como se ele não fosse consequência de uma situação anterior.

Mas há uma lacuna grave e absolutamente inaceitável da parte de Marques Gomes : o seu livro não contem um único dado factual sobre elementos essenciais, determinantes da vida de um jornal. Quais foram as tiragens precisas do Diário de Notícias antes, durante e depois da direção Barros-Saramago ? Quais foram os números referentes às assinaturas e às vendas em banca ? Quais foram precisamente as receitas publicitárias [2]? E, em consequência destes diversos elementos, quais foram as situações financeiras do Diário de Notícias nos diferentes períodos da sua história no ante-25 de Abril e no pós-25 de Abril ? Não se pode afirmar que as vendas e as receitas publicitárias baixam sem avançar a menor prova fatual disso.

A imprensa para além da política

Em matéria de imprensa, não se pode fazer história como se um jornal fosse uma instituição meramente política ou, na melhor das hipóteses, uma coletividade meramente sociopolítica.

O livro de Marques Gomes sobre “os saneamentos políticos no Diário de Notícias” é pois um trabalho interessante mas claramente insuficiente para compreender o que foi o “maremoto que devastou o sector da imprensa após o 25 de Abril” [3]. Ou mesmo até para compreender mais simplesmente o que foi a travessia do Diário de Notícias nos tempos de Marcelo Caetano (para não ir mais longe, pois não era esse o projeto do autor) até à privatização da sua empresa de edição (por exemplo). O que quer dizer que a história do Diário de Notícias (antes, durante e depois do “Verão Quente de 1975”) como instituição jornalística e editorial continua muito simplesmente por fazer…


[1] Pedro Marques Gomes, Os Saneamentos políticos no Diário de Notícias, Lisboa, Alêtheia, 2014, 322 p.
[2] A referência em rodapé ao que foi escrito a este propósito no semanário Tempo (e não « O Tempo ») merece no mínimo pouca credibilidade, dada a enorme falta de rigor que caraterizava este jornal.
[3] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « Razões que explicam a miséria », in Notas de Circunstância, Fundão, n° 6, fevereiro de 2014.
J-M. Nobre-Correia, « Um momento da história em perspetiva », in Notas de Circunstância, Fundão, n° 8, abril de 2014.